“Pacote tributário” de fim de ano, sua revogação e a anterioridade tributária

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OPINIÃO

“Pacote tributário” de fim de ano, sua revogação e a anterioridade tributária

5 de janeiro de 2023, 21h34

Por Douglas Guidini Odorizzi e Luís Henrique da Costa Pires

Como é da tradição do sistema político nacional, o término de um exercício e o início de outro, ainda mais quando há transição governamental, é marcado por alterações legislativas ao apagar das luzes do ano a encerrar e ao alvorecer do novo período, especialmente no que respeita ao sistema tributário.

Não foi diferente dessa vez. Em 29 de dezembro de 2022, foi publicada MP (1.152) com novas regras a respeito do cálculo dos preços de transferência que interessam à formação das bases do IRPJ e da CSLL, com previsão de entrada em vigor 1/1/2024 e possibilidade de sua adoção por opção dos contribuintes já em 2023. Em 30 de dezembro de 2022, foram publicados decretos que reduziram as alíquotas do AFRMM (Decreto 11.321) e do PIS/Cofins sobre receitas financeiras das pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo (Decreto 11.322) e um outro que ampliou os benefícios do programa de desenvolvimento da indústria de semicondutores (Decreto 11.323). Logo no primeiro dia de janeiro de 2023, sobreveio Decreto (11.374) que revogou os três decretos anteriores, repristinando as redações antes vigentes e Medida Provisória (1.157) que tratou da tributação dos combustíveis, com previsão de alíquota zero de PIS/Cofins até 31/12/2023 para o diesel, biodiesel e gás liquefeito e até 28/02/2023 para a gasolina e o etanol. Em relação ao último, não se previu mecanismos de equalização, a exemplo daqueles que vigoraram até o final de 2022. Todas as medidas do novo governo foram publicadas no DOU em 2/1/2023.

Se, dado o objetivo do novo governo de restabelecer as cobranças que vigoravam até o fim de 2022, a previsão expressa de repristinação das alíquotas antes vigentes foi, de um lado, acertada face ao que prevê o ordenamento (Lindb, artigo 2º, § 3º), de outro, perdeu-se a oportunidade de se dispor que o Decreto 11.374 entraria em vigor na data de sua publicação, mas os seus efeitos teriam que respeitar a anterioridade.

O tema é relevante, tanto que já tem sido objeto de diferentes manifestações. Afinal, na medida em que o novo decreto (11.374) se limita a prever entrada em vigor na data de sua publicação (artigo 4º), que ocorreu no dia 2/1/2023, há a possibilidade concreta de as alíquotas de PIS/Cofins sobre receitas financeiras e do AFRMM reestabelecidas em 2023 serem exigidas já de imediato pelas autoridades fiscais. Até porque o objetivo foi restabelecer os percentuais de tributação outrora vigentes.

Um exame mais acurado, todavia, atento à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tratando de temas semelhantes, conduz ao entendimento no sentido de que tais alterações devem obedecer à anterioridade nonagesimal (caso do PIS/Cofins, nos termos do artigo 195, §6º da CF) e anual (caso do AFRMM, por se tratar de CIDE fundamentada no artigo 149 da CF, conforme o STF [1]).

Com efeito, é sabido que a instituição e/ou o aumento de tributos sujeitam-se ao princípio da anterioridade (anual e/ou nonagesimal, conforme o caso). Tal se aplica inclusive a casos em que as alíquotas máximas estejam previstas em lei que contenha, outrossim, a delegação ao Poder Executivo da faculdade de reduzir e restabelecer os seus percentuais.

No caso concreto, houvesse o Poder Executivo simplesmente aumentado as alíquotas, não haveria dúvida quanto à aplicação da anterioridade. Certamente por isso, no caso do PIS/Cofins sobre receitas financeiras, além da revogação do Decreto 11.322 (que havia reduzido as alíquotas), houve também expressa referência à repristinação do Decreto 8.426/2015, vigente anteriormente.

Contudo, independentemente da repristinação (PIS/Cofins sobre receitas financeiras) ou da simples revogação (AFRMM), fato é que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao longo dos últimos anos, tem sido rigorosa no que respeita à observância da anterioridade na sucessão de atos normativos quando identificado o aumento de tributo, mesmo quando realizado de modo indireto.

Nesse sentido, examinando a majoração do PIS/Cofins sobre combustíveis, decidiu a corte que “o simples fato de essas contribuições serem restabelecidas pelo Poder Executivo, nas hipóteses em que isso se mostra possível, não afasta a incidência da regra do art. 195, §6º, da Constituição Federal (…). Afinal, se a lei que, mesmo de forma indireta, majora a carga tributária do contribuinte — quer elas tenham ou não função extrafiscal — é obrigada a observar a anterioridade nonagesimal, com igual razão é obrigado a respeitá-la o regulamento autorizado” [2].

Especificamente em matéria de PIS/Cofins sobre receitas financeiras, ao examinar a constitucionalidade do artigo 27, §2º da Lei 10.865/2004, que delegou ao Poder Executivo a faculdade de aumentar as alíquotas, a Suprema Corte reconheceu a legitimidade da delegação mas, ainda que a título de obiter dictum, posto que não era objeto da demanda, pontuou que “a delegação legislativa para esse elevador de alíquotas, sempre respeitando o teto máximo previsto em lei, não afasta a necessidade de observância do princípio da anterioridade nonagesimal no caso de retorno total ou parcial das alíquotas até aquele teto, porque a ideia de anterioridade nonagesimal, aqui, é uma garantia ao contribuinte” [3]

Mais recentemente, o Pleno da corte referendou a liminar concedida pelo ministro Toffoli na MC da ADI 7.181 (J: 21/6/2022), em que se questionava um dispositivo da MP 1.118/22 que havia alterado a LC 190/22 (editada dias antes) para retirar a possibilidade de manutenção de créditos de PIS/COFINS de determinados agentes da cadeia econômica. Por reconhecer que a MP “majorou indiretamente a carga tributária do PIS/Pasep e da Cofins”, concluiu-se que “a instituição e a majoração de tais contribuições estão sujeitas à anterioridade nonagesimal (…) a majoração indireta de suas cargas também está sujeita a essa anterioridade”.

A linha adotada pela Suprema Corte, portanto, não deixa margem a dúvida quanto à amplitude do princípio da anterioridade.

A questão central a ser observada relativamente às sucessões nos decretos em exame para fins de aplicação da anterioridade diz respeito à solução ou não de continuidade de normas que alteram a carga tributária.

Nessa linha, ao apreciar litígio sobre a extinta CPMF, então revigorada pela Emenda Constitucional 37/2002, decidiu a Suprema Corte[4] que, como a Emenda havia sido editada em 12/6/2002 e a legislação então em vigor previa a sua incidência até 18/6/2022 — ou seja, alguns dias depois — estar-se-ia “diante de mera prorrogação, sem solução de continuidade”, daí porque não haveria a necessidade de observação da anterioridade.

Relativamente ao PIS das instituições financeiras alterado pelas Emendas Constitucionais 1/1994, 10/1996 e 17/1997, concluiu-se diferentemente, justamente porque se constatou “a solução de continuidade entre a vigência de determinada emenda constitucional e a entrada em vigor de nova emenda que majore ou institua tributo”, o que “impede que se considere haver mera prorrogação do quanto estabelecido na emenda primitiva”. A ministra Carmen Lucia pontuou, na ocasião, que “nesta situação em que se operou ‘solução de continuidade’ normativa, tem-se a incidência do art. 195, §6º, da Constituição da República”.[5]

Idêntico entendimento foi firmado quando apreciada a Lei Complementar 122/2006, que postergou o direito ao crédito do ICMS na aquisição de bens de uso/consumo que, à época, estava previsto para vigorar a partir de 1º/1/2007. Justamente porque a Lei havia sido publicada antes do prazo então firmado para o início do exercício do direito ao creditamento, negou-se a aplicação da anterioridade por ter havido “postergação de esperada redução dos níveis reais do imposto” [6].

O critério diferencial adotado pelo Supremo Tribunal Federal não deixa dúvida: se uma norma é publicada antes do término da vigência da norma anterior, não há necessidade de aplicação da anterioridade. Já se a norma é publicada depois (solução de continuidade), aplica-se a anterioridade.

No caso em exame, as reduções de tributos foram previstas em atos (Decretos 11.321 e 11.322) publicados em 30/12/2022, com vigência a partir de 1/1/2023. Já a revogação se deu por ato (Decreto 11.374) datado de 1/1/2023, publicado em 2/1/2023. Portanto, as reduções de tributos restaram vigentes, ainda que pelo menos por um dia. Houve solução de continuidade, pouco importando, para fins jurídicos, a duração dela.

Diante desse contexto, é legítima a expectativa de que o Judiciário, uma vez provocado, reconheça o dever de observância da anterioridade com relação às revogações perpetradas pelo Decreto 11.374.

[1] RE 177.137, Tribunal Pleno, min. Carlos Velloso, j: 24/5/1995.

[2] ADI 5.277, Tribunal Pleno, min. Dias Toffoli, j: 10/12/2020.

[3] RE 1.043.313, Tribunal Pleno, min. Dias Toffoli, j: 10/12/2020.

[4] ADI 2.666, Tribunal Pleno, min. Ellen Gracie, j: 3/10/2002.

[5] RE 578.846, Tribunal Pleno, min. Dias Toffoli, j: 6/6/2018.

[6] RE 603.917, Tribunal Pleno, min. Rosa Weber, j: 25/10/2019.

Douglas Guidini Odorizzi é sócio no Dias de Souza Advogados Associados.

Luís Henrique da Costa Pires é advogado no Dias de Souza Advogados Associados e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

Fonte: ConJur


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