Empresas traçam estratégias para questionar acordos de leniência

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Empresas traçam estratégias para questionar acordos de leniência

 

23 de fevereiro de 2023, 21h14

Por Fernando Teixeira

Empresas estão traçando estratégias para questionar os acordos de leniência firmados na esteira da finada “lava jato”, tendo como objetivo não só rever prazos e meios de pagamento, mas também o tamanho das dívidas. A argumentação é jurídica e econômica: segundo as companhias, os métodos de cálculo adotados pela “lava jato” produziram valores excessivos e seu peso prejudica o funcionamento das empresas e os níveis gerais de investimento, emprego e renda.

O plano consiste em propor negociações coletivas, disputas administrativas e, em último caso, acionar o Poder Judiciário. O ponto de partida é demonstrar que os tais acordos de leniência foram, na realidade, imposições unilaterais dos órgãos de controle. Pressionadas por crise financeira e jurídica, as empresas estavam dispostas a aceitar qualquer coisa, e o resultado foi admitir penalidades excessivas e acusações inconsistentes.

O projeto de revisão dos acordos tomou impulso com a mudança no governo federal, que fortaleceu um discurso mais crítico à “lava jato” e deu maior espaço a políticas públicas de geração de emprego e renda. O novo cenário viabiliza uma leitura segundo a qual a autodenominada força-tarefa foi construída sobre uma narrativa forçada e produziu como resultado dificuldades persistentes para a economia brasileira.

Na Procuradoria-Geral da República a soma dos acordos de leniência chega a R$ 24 bilhões, enquanto na Controladoria-Geral da União o volume é de R$ 18 bilhões. Promover a revisão resulta em injeção de capital nas empresas, ajuda a desfazer impedimentos jurídicos e alivia problemas de reputação e imagem, induzindo os grupos a fechar mais negócios e a captar recursos financeiros em melhores condições.

Quem bate mais

Um advogado envolvido nas discussões sobre a revisão dos acordos de leniência afirma que o problema não são só as penalidades muito altas, mas também os prazos muito longos. Em outros países, os valores de acordos anticorrupção são mais baixos e o pagamento é à vista. Isso porque o objetivo do acordo de leniência é exatamente encerrar a disputa o mais rápido possível, possibilitando a retomada imediata das atividades normais da empresa.

No Brasil, as prioridades dos acordos foram outras, e os valores foram jogados lá para o alto, e parcelados em 20 anos ou mais. O resultado foi submeter empresas já em crise a acordos vexatórios e pesados compromissos de longo prazo. “A ideia era fechar o acordo e olhar para o futuro. Mas o resultado foi perpetuar o problema”, afirma o advogado.

Os motivos para essa hipertrofia dos acordos de leniência no Brasil foram a adoção de um enfoque punitivista e o surgimento de uma disputa entre órgãos de controle por protagonismo, gerando penalidades cada vez mais altas. “O resultado foi uma competição predatória para ver quem bate mais”, diz o advogado.

Na ponta do lápis

Outro aspecto a ser questionado é a matemática dos acordos. As planilhas utilizadas durante as negociações são mantidas em sigilo até hoje, mas fontes ligadas ao processo garantem que os números contêm muitas inconsistências. O plano é questionar os valores um a um.

Ex-ministro da CGU e sócio do escritório Warde AdvogadosValdir Simão avalia que os números da leniência poderão ser revistos de duas formas: “Os acordos fechados na ‘lava jato’ podem ter um problema de identificação de ilícito versus identificação de valores de ressarcimento”, afirma ele.

Segundo Simão, existe aí uma questão de legalidade. Alguns casos exigem uma reavaliação tendo em vista decisões judiciais mais recentes, o que pode derrubar multas, sanções e ressarcimentos. Um exemplo é o entendimento de que alguns valores foram pagos a título de “caixa dois eleitoral”, o que legalmente traz efeitos para o agente político, mas não para o doador.

Em outros casos, o problema é a ausência de manifestação do órgão competente para atestar o dano. Há situações em que o acordo considera prejuízo para o Estado a concessão de um benefício fiscal, mas não traz manifestação da autoridade tributária sobre o assunto. Da mesma forma, questões relativas ao mercado de capitais deveriam passar pela avaliação do órgão competente, no caso, a Comissão de Valores Imobiliários (CVM).

Sobrepreço e superfaturamento

Outra questão é a restituição de ganhos considerados ilícitos. No ano passado, o Tribunal de Contas da União definiu o tema do disgorgement, ou restituição de lucros indevidos referentes a contratos considerados nulos. O problema é o cálculo desse “lucro indevido”.

No caso da Petrobras, os números variam. Estimativas divulgadas pela Polícia Federal no âmbito da “lava jato” chegaram ao número de R$ 42 bilhões em desvios, partindo de uma presunção hipotética de 20% de superfaturamento nos contratos suspeitos. Com outros métodos, o MPF chegou ao número de R$ 20 bilhões, e a Petrobras lançou no balanço de 2014 o valor de R$ 6,2 bilhões. As metodologias são, em todos os casos, consideradas questionáveis.

No caso da construção civil, a conta envolve diferenciar “sobrepreço” de “superfaturamento”. Sobrepreços apontados por órgãos de controle podem refletir inflação de custos e mudanças de projeto típicas de grandes obras. Já o superfaturamento implica fraude. Segundo depoimentos obtidos nas investigações da “lava jato”, os pagamentos suspeitos não visavam, via de regra, a fraudes e superfaturamento.

A matemática da leniência implica entender melhor causas e finalidades das “vantagens indevidas” pagas a funcionários e autoridades. Os pagamentos podem ser uma exigência do próprio agente público e não ter relação com fraudes e desvios, caso classificado na legislação internacional como “pagamento de facilitação e agilização”. No Brasil, a situação é conhecida pela expressão “criar dificuldade para vender facilidade”. Pode haver também uma relação difusa de favorecimento entre agente público e privado, caso das doações eleitorais. Nessas situações, o objetivo não é necessariamente produzir um prejuízo material ao Estado.

A ilusão da ‘grande roubalheira’

O tema é abordado em tese de doutorado em Direito Econômico defendida na Universidade de São Paulo (USP) e publicada em livro pela especialista em infraestrutura Maria Virginia Mesquita Nasser, sócia da banca Vieira Rezende Advogados. Segundo a tese, o equilíbrio dos grandes contratos de construção civil com o poder público sempre foi um problema no Brasil, devido a baixa segurança jurídica, alto risco de inadimplência do Estado e contínua necessidade de alterações por aditivos contratuais. A consequência é o estímulo a relações de favorecimento entre agentes públicos e privados como forma de estabilizar a relação contratual.

Segundo a tese, a “lava jato” revelou uma relação sedimentada no país há anos, na qual doações eleitorais lícitas ou ilícitas são feitas em troca de políticas favoráveis e acesso a autoridades. “Ao enquadrar tudo como ‘uma grande roubalheira’, criamos a ilusão de que punindo rigorosamente estaríamos resolvendo o problema, o que está longe de ser a realidade”, afirma a advogada.

Essa narrativa criou também a impressão de que os valores exigidos nos acordos de leniência estavam disponíveis nos caixas dos envolvidos. “No caso das empresas, esse dinheiro não estava lá e depende da atividade futura da empresa para poder ser gerado e pago. Mas a espiral punitiva criada com a ‘lava jato’ acabou dificultando isso.”

Os caminhos para solucionar os problemas dos acordos de leniência, contudo, ainda estão em construção. Valdir Simão chama a atenção para um termo de cooperação técnica assinado em 2020 por Supremo Tribunal Federal, CGU, TCU, Advocacia-Geral da União e Ministério da Justiça, o qual estabeleceu novas regras para a celebração dos acordos do tipo.

A norma enuncia como princípio para a formulação de acordos a preservação da empresa e dos empregos, “considerando que a continuidade das atividades de produção de riquezas é um valor a ser protegido”. Para o ex-ministro, o documento é motivo suficiente para se promover uma revisão geral dos acordos de leniência celebrados até 2020, com moratória das parcelas pendentes enquanto durarem as negociações.

Fernando Teixeira é jornalista, economista e colaborador da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2023, 21h14

 

Fonte: ConJur


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