PROPRIEDADE INTELECTUAL
O impacto da ADI 5.529 no preço dos medicamentos
Redução no preço de remédios é meta da Agenda 2030 da ONU, divulgada pelo STF
MARCUS VINICIUS VITA FERREIRA CLARISSA MARCONDES MACÉA
No início deste ano, o JOTA indicou os principais julgamentos na pauta econômica do Supremo Tribunal Federal (STF) para o primeiro semestre de 2021. Uma das ações destacadas foi a ADI 5.529, de relatoria do Ministro Dias Toffoli. A ação questiona o parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), que possibilita a extensão do prazo de patentes de invenção para além dos 20 anos contados da data do depósito. Em texto publicado neste JOTA no último dia 2 de março, abordamos como a regra do parágrafo único destoa do Direito Comparado e não deriva de compromissos internacionais do Brasil, que, como país em desenvolvimento, não é detentor de muitas patentes. Isso reforçaria a fundamentação jurídico-constitucional para a declaração da inconstitucionalidade da norma. Neste novo artigo, desejamos ilustrar os impactos econômicos no campo da saúde causados pela extensão patentária em debate no STF. A disputa tem consequências econômicas expressivas e coloca em lados opostos a indústria farmacêutica nacional, produtora de genéricos, e a indústria estrangeira, principal detentora de patentes.
Originalmente pautada para 26 de maio, a ação teve seu julgamento antecipado, pela presidência da Suprema Corte, para 7 de abril, após pedido de tutela de urgência formulado pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
Ao justificar os motivos que tornam a apreciação do caso pela Suprema Corte, a PGR apontou as repercussões que a ação pode ter no enfrentamento da crise sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, seja na questão do acesso a medicamentos a serem utilizados contra a doença, seja considerando os gastos que a norma acarreta para a União, Estados e Municípios, ao consumir o orçamento do Sistema Único de Saúde (SUS) em compras, com sobrepreço, de medicamentos com patentes estendidas.
Do ponto de vista econômico, a disputa é simples de ser entendida: durante o período de extensão das patentes autorizado pela norma objeto da ação, fica proibida a introdução no mercado de versões genéricas dos medicamentos. O efeito dos genéricos na formação de preços é altamente favorável à saúde pública: conforme Resolução do Conselho de Ministros da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), os genéricos devem ter preços pelo menos 35% inferiores aos dos medicamentos de referência. Na prática, observam-se descontos muito mais expressivos: as versões genéricas do daclatasvir e do sofosbuvir, para tratamento da hepatite C, por exemplo, são vendidas a valores, respectivamente, 99,1% e 98,9% mais baratos, segundo estudo do Grupo de Economia da Inovação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com a extensão das patentes, no entanto, os preços permanecem por mais tempo em patamares elevados. O SUS e o consumidor são obrigados a pagar pelo custo adicional, diante da falta de concorrência.
As consequências da norma debatida na ação no campo da saúde pública já foram demonstradas por instituições públicas e universidades.
O Tribunal de Contas da União (TCU), no ano de 2020, nos autos do TC 015.369/2019-6, apontou que para um subconjunto de apenas onze medicamentos adquiridos pelo Ministério da Saúde, os efeitos da ampliação do prazo de patente podem ter chegado perto da cifra de R$ 1 bilhão entre 2010 e 2019. O TCU ressalvou que a amostra utilizada representaria um percentual bastante conservador, sugerindo que o potencial de redução de custos nas aquisições públicas de medicamentos seria bem maior do que a estimativa apresentada.
Os impactos da norma para o SUS também foram objeto de estudo pela UFRJ, em 2019. Analisando um grupo de nove medicamentos, e considerando dados de compras estratégicas realizadas pelo Ministério da Saúde entre 2014 e 2018, a UFRJ concluiu que o prolongamento das patentes, naquele período, acarretou somente para esses nove medicamentos gastos adicionais de R$ 3,9 bilhões para o sistema público de saúde.
Em data recente, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) realizou estudo mais abrangente, com vistas a avaliar as consequências da norma a partir de listagem de 937 medicamentos comprados pelo governo, considerando banco de preços do próprio Ministério da Saúde. A FIPE apurou que a extensão das patentes para esse grupo de medicamentos pode gerar para o SUS um custo extra total da ordem de dezenas de bilhões de reais.
Não há dúvidas, portanto, da magnitude bilionária dos gastos adicionais que a norma discutida na ADI 5.529 acarreta para o orçamento da saúde. O julgamento pela procedência da ação é de especial importância e urgência neste momento de combate à extraordinária e gravíssima crise sanitária. A pandemia traz consigo, ao mesmo tempo, efeitos econômicos recessivos e aumento da pressão por gastos públicos em matéria de saúde e assistência social.
A decisão do STF pela inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 40 da LPI terá, portanto, impactos significativos e imediatos para o SUS e para os consumidores. Além disso, estará perfeitamente alinhada com as metas de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, que vem sendo, inclusive, divulgada pela Suprema Corte em seu website. Estabelecida em setembro de 2015, na Assembleia Geral da ONU realizada em Nova York, com a participação de 193 Estados-membros, a Agenda 2030 estabeleceu dezessete objetivos de desenvolvimento sustentável, voltados, entre outros, a promover o Estado de Direito e os direitos humanos. As metas 3.8 e 3b do objetivo de desenvolvimento sustentável “saúde e bem estar” têm justamente por foco possibilitar medicamentos a preços mais acessíveis para todos.
O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:
MARCUS VINICIUS VITA FERREIRA – Sócio do Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados, pós-graduado em Direito do Consumidor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público (IDP). Foi consultor convidado da Comissão de Assuntos Constitucionais, e da Comissão de Mediação e Arbitragem do Conselho Federal da OAB.
CLARISSA MARCONDES MACÉA – Advogada do Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados, graduada pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito (LL.M.) pela Universidade de Harvard. Foi Assessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal e Chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo. É Procuradora do Município de São Paulo licenciada.