O adultocentrismo na discussão da adultização
Por: Bruna Avancini e Stefania Molina*
A recente promulgação da Lei 15.211/2025 representa um marco fundamental na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital brasileiro. A nova legislação busca garantir os direitos desse público frente a produtos e serviços de tecnologia da informação, especialmente aqueles direcionados ou de provável acesso por crianças e adolescentes.
O texto aprovado impõe uma série de obrigações às plataformas digitais, como redes sociais, serviços de vídeo e jogos online. Entre os principais pontos, destaca-se a exigência de que essas plataformas adotem medidas “razoáveis” para impedir que crianças e adolescentes tenham acesso a conteúdos ilegais ou inadequados para suas faixas etárias. Isso inclui materiais relacionados à exploração, abuso, intimidação, ameaças e outras formas de violência, além de práticas publicitárias enganosas e predatórias.
A lei também estabelece diretrizes para a supervisão parental e exige a adoção de mecanismos mais eficazes de verificação etária, superando o modelo atual. Além disso, a nova legislação prevê diversas punições para crimes cometidos contra menores no ambiente digital.
É, sem dúvida, um avanço necessário para o fortalecimento de mecanismos regulatórios eficazes para a proteção das crianças frente às mídias sociais. A tramitação acelerada do projeto ganhou impulso após a ampla repercussão de um vídeo publicado pelo youtuber Felca. No conteúdo, o criador denunciou a adultização de crianças como estratégia para gerar engajamento e lucro nas redes sociais, além de alertar para o uso desses conteúdos por redes de pedofilia. A denúncia mobilizou a opinião pública e colocou a proteção da infância digital no centro do debate nacional.
O impacto foi imediato: segundo a ONG SaferNet, houve um aumento de 114% nas denúncias de pornografia infantil entre 6 e 11 de agosto, saltando de cerca de 770 (em 2024) para 1.651 denúncias no mesmo período de 2025. O Disque 100 também registrou, na ocasião, um crescimento expressivo. Além disso, houve resposta política rápida, com apoio bipartidário do Legislativo, prisão do influenciador citado no vídeo, mobilização da mídia e da sociedade civil e, finalmente, a lei.
A pressão gerada em torno da denúncia mostrou que o País está pronto para discutir com mais seriedade a segurança digital de crianças e adolescentes. Mas também expôs um problema estrutural mais profundo: quem fala pelas crianças? E por que quase nunca são elas?
A aprovação da Lei 15.211/2025 é um avanço, mas não pode ser vista como solução única. O foco ainda está excessivamente centrado na lógica punitiva e no controle exercido por adultos, sejam eles legisladores, pais ou educadores. O problema é que, muitas vezes, isso exclui as próprias crianças das conversas que definem seu bem-estar, seus direitos e sua presença no mundo digital.
Não abordar esses temas com as crianças não as exime de vivenciar abusos e explorações; ao contrário, o silêncio as torna mais vulneráveis. Não se trata, portanto, de poupá-las de assuntos difíceis e complexos, frutos de relações de poder e exploração da vida humana, mas de aprender a se comunicar com elas, em sua linguagem, altura e condições de entendimento.
É fundamental investir também em medidas educativas e preventivas, como o letramento digital e midiático, desde a primeira infância, que ensinem as crianças a identificar riscos, reconhecer abusos e saber como e onde denunciar. Além disso, é urgente criar canais de escuta e denúncia adaptados à linguagem infantil, que realmente levem em conta as experiências e perspectivas delas.
Educar na primeira infância não diz respeito apenas à transmissão de conhecimentos formais das ciências, mas também ao desenvolvimento socioemocional — princípio previsto e incentivado pelas diretrizes curriculares nacionais, especialmente pela BNCC e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
Promover e fortalecer os recursos das crianças para reconhecer, nomear e reagir a situações de risco ou violência é um direito humano da infância, que lhes confere condição de cidadania e dignidade. Mas isso não se restringe a preparar as crianças; é preciso também educar os adultos — pais, professores, legisladores e sociedade civil — para que sejam capazes de traduzir discussões que impactam a vida pública infantil para uma linguagem acessível, garantindo que elas compreendam e possam participar ativamente.
Além disso, a maneira como a discussão pública tem sido conduzida importa: a exposição massiva de imagens de violência contra crianças, muitas vezes repetida em noticiários e redes sociais, afeta diretamente o bem-estar psicológico de outras crianças que, de forma pouco controlada, têm acesso a esse conteúdo. Proteger crianças no ambiente digital significa, também, pensar em como comunicamos esses temas, de modo a reduzir danos e respeitar sua condição de sujeitos de direitos.
Essa perspectiva não é apenas uma recomendação ética; é uma obrigação legal do Brasil. O País é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), que, em seu artigo 12 garante à criança o direito de ser ouvida em todos os assuntos que lhe digam respeito, e em seu artigo 13 assegura sua liberdade de buscar, receber e difundir informações. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/1990), por sua vez, reforça em seu artigo 16 o direito à liberdade de opinião e expressão e, em seu artigo 17, o direito ao respeito e à dignidade.
O Plano Nacional pela Primeira Infância (PNPI), em seus dez princípios fundantes, estabelece não apenas a obrigação nacional de proteger e educar as crianças, mas também, no princípio 9, a necessidade de garantir sua participação e escuta, conferindo-lhes o lugar de fala que é seu por direito.
Experiências internacionais como o Child-Led Budget Advocacy, no Nepal, e a ECPAT International, ilustram a viabilidade da criação de mecanismos de participação infantil nas políticas públicas. O primeiro promove a atuação direta de crianças e adolescentes na definição de prioridades orçamentárias municipais, garantindo que suas vozes influenciem decisões que impactam suas vidas cotidianas. O segundo — coalizão presente em mais de 100 países — articula ações para a prevenção da exploração sexual e a proteção de crianças, sempre com foco na escuta ativa e no protagonismo infantil. Exemplos como esses demonstram que ouvir crianças não é apenas um imperativo ético ou legal, mas também uma prática viável, já testada e com resultados positivos no fortalecimento de políticas públicas e no combate a violências sistêmicas.
Portanto, proteger crianças no ambiente digital vai além da fiscalização e punição. É garantir sua autonomia, sua escuta e seu direito de existir com dignidade e segurança em todos os espaços, inclusive os digitais. É necessário criar canais de escuta adaptados à linguagem infantil, formar redes de apoio intersetoriais (família, escola, saúde, justiça) e reconhecer as crianças como cidadãs plenas. Somente assim será possível enfrentar, de forma estrutural e emancipatória, os riscos da adultização e do adultocentrismo que marcam nossa sociedade.
A participação de crianças e adolescentes nos debates que impactam suas vidas é um princípio assegurado pelo ECA e pela Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU. No entanto, no debate público, essa participação ainda é marginal. Ouvir as crianças, envolvê-las com responsabilidade, informar, educar e criar espaços seguros para que elas se expressem deve ser parte integrante de qualquer política de proteção digital. Devemos fazer isso com o apoio das escolas, das famílias e de profissionais da saúde, educação e justiça. Proteger crianças no ambiente digital é também garantir sua autonomia, sua escuta e seu direito de existir com dignidade e segurança em todos os espaços.
*Bruna Avancini Pedagoga e internacionalista, é doutoranda pela Universidade de Lisboa
*Stefania Molina Administradora pública pela FGV, é doutora em Políticas Públicas pela Hertie School e Humboldt University
