Menos litigância, mais justiça

Menos litigância, mais justiça

Por: Felippo da Cunha Accetta, Vinícius Matheus Lima de Assis

O elevado número de processos judiciais no Brasil não é uma novidade. Em um sistema jurídico profundamente influenciado pela cultura da sentença[1], o excesso de ações — muitas vezes movidas de forma desmedida ou irresponsável — impõe um desafio relevante à prática contenciosa atual: a litigância predatória.

O combate a esse fenômeno, além de um passo essencial para assegurar um sistema judicial mais eficiente e célere, também deve ser compreendido sob a ótica de uma análise econômica e comportamental das causas e consequências das decisões judiciais que tocam este assunto.

Nesse cenário, em 23/10/2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, por unanimidade, a Recomendação 159/2024, dando um novo passo ao combate dessa epidemia[2]. Em resumo, a recomendação tem por objetivo a identificação, o tratamento e a prevenção de condutas processuais que sobrecarregam o Judiciário e comprometem o acesso efetivo à justiça – prática que já vinha sendo implementada por iniciativas das corregedorias estaduais e centros de inteligência de diversas cortes nacionais –, incluindo o Superior Tribunal de Justiça (STJ)[3].

A cartilha se apoia na criação do Painel de Informações da Rede, uma iniciativa que integra dados das corregedorias dos tribunais e estimula a troca de boas práticas entre si, além de facilitar a fiscalização de processos e o monitoramento de comportamentos que possam ser considerados abusivos. Ao centralizar informações e contatos estratégicos, a ferramenta contribuirá para uma atuação ágil e eficaz dos órgãos, impulsionando-os a adotar práticas e protocolos específicos para o tratamento dos casos com indícios de litigância predatória.

Não se deve confundir: as boas práticas previstas na resolução não podem ser entendidas e aplicadas como limitadoras do acesso à justiça pela sociedade, mas importantes balizadores para a busca de uma justiça mais célere e efetiva.

Como dito nas primeiras linhas deste artigo, a litigância abusiva não é novidade, assim como as suas principais causas e, como é cediço, a indiscriminada concessão da benesse da gratuidade de justiça e a quase destituição automática do ônus probatório do litigante são alguns alicerces dessa cultura[4]. A proposta do CNJ não é bloquear a sociedade de buscar a tutela de seus direitos, mas eliminar excessos cometidos de forma indiscriminada.

Todavia, se a resolução acerta em reforçar e constituir práticas que confrontam essas já conhecidas condutas, não aproveita a oportunidade para encaminhar uma discussão sobre novos pontos de atenção. O viés econômico das empresas acionadas judicialmente e a padronização cognitiva das decisões judiciais são a bola da vez.

De um lado, o alto volume de processos gera um aumento no provisionamento de valores para cobrir possíveis perdas ou acordos, bem como eleva os custos operacionais e causa impactos sobre os resultados financeiros (cost of doing business[5]). Por outro, também enseja uma padronização e repetição de julgados genéricos, fundamentados quase que exclusivamente no Código de Defesa do Consumidor, presumindo-se o estado de vulnerabilidade e a hipossuficiência técnica da parte.

Do ponto de vista comportamental, a padronização de decisões surge como subterfúgio para o emprego de uma escolha racional falaciosa: argumentos jurídicos também envolvem simplificações da realidade e partem de determinadas premissas convenientemente assumidas como verdadeiras[6]. Em outras palavras, é mais fácil adotar preferências e padrões decisórios já estabelecidos na massificação de determinados processos do que os individualizar.

Tal postura agrava os impactos às empresas demandadas, em razão da imprevisibilidade do provisionamento de valores, decorrentes tanto da irrazoabilidade quanto da falta de parâmetros adequados para a fixação de indenizações – com destaque para a vulgarização dos danos morais no Brasil[7].

Nessa linha, a economista Luciana Young aborda a necessidade de se considerar o consequencialismo das decisões judiciais nos impactos do desenvolvimento econômico do país, o que é ilustrado pela figura do bumerangue:

[…] uma decisão judicial não impacta somente as partes que trouxeram o litigio, elas são sinalizações para outros indivíduos e empresas, que por sua vez, tomarão decisões que refletirão igualmente em outras pessoas. E a insistência em ignorar as externalidades de suas decisões que faz com que a dogmática jurídica, e as decisões judiciais, acabe gerando o que chamamos de efeito bumerangue. Este acontece, por exemplo, quando um juiz profere uma decisão (normalmente com muito boas intenções) para proteger uma pessoa, por exemplo, um hipossuficiente. Mas, pela ignorância de seus efeitos, a decisão acaba voltando e gerando resultados que prejudicam a própria pessoa que se quis inicialmente proteger — tal qual o bumerangue, que após lançado, volta e pode cortar a cabeça do lançador incauto.[8]

Com efeito, os custos e os impactos imprevisíveis das demandas predatórias causam um cenário de insegurança nos resultados das companhias que operam no país, inviabilizando negócios e diminuindo a atratividade para investimentos[9].

Assim, o bumerangue se volta contra a própria sociedade, uma vez que a majoração dos gastos e a restrita margem de lucro de alguns setores econômicos, se não inviabilizam a continuidade e diminuem a competitividade do mercado, tornam-se um ônus à própria sociedade, a partir da incorporação destes custos pelos preços de produtos e serviços.

Assim, torna-se indispensável uma abordagem que concilie o rigor técnico na aplicação dos institutos jurídicos nas suas decisões com uma análise crítica tanto de sua própria fundamentação, quanto de seus impactos econômicos e sociais, coibindo incentivos para práticas processuais predatórias.

A Recomendação 159/2024 do CNJ representa, sim, um avanço significativo na definição de diretrizes para garantir o equilíbrio entre o direito de ação com o combate às práticas abusivas de litigiosidade.

No entanto, o alcance de resultados efetivos e justos para todos os atores deste cenário deve ser lido em conjunto com uma análise econômica e comportamental, considerando os impactos sistêmicos das decisões judiciais e o seu papel na fomentação da litigância predatória – o que, infelizmente, ainda não foi realizado.

Felippo da Cunha Accetta LL.M Direito e Tecnologia na FGV Rio. Advogado em Becker Bruzzi Lameirão Advogados (BBL Advogados)

Vinícius Matheus Lima de Assis Pós-graduando em Direito Civil pela UERJ. Advogado em Becker Bruzzi Lameirão Advogados (BBL Advogados)

Leia a íntegra: JOTA


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