Lives e pegadinhas publicadas nas redes sociais desafiam LGPD

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Lives e pegadinhas publicadas nas redes sociais desafiam eficácia da LGPD

Por Rafa Santos

Com o inevitável telefone celular à mão, alguém aborda uma pessoa na rua e pergunta “R$ 2 ou uma surpresa misteriosa?”, ao mesmo tempo em que filma a cena para mais tarde abastecer suas redes sociais. Apesar da aparente inocência da brincadeira, esse tipo de vídeo representa um desafio regulatório para a proteção de dados pessoais.

Seja gravado ou exibido ao vivo (a famosa live), o vídeo é monetizado e, se gerar grande audiência, vai encher o bolso de seu autor. O problema: sem a autorização da “vítima” da brincadeira, esse material viola os direitos garantidos aos cidadãos brasileiros pela Lei Geral de Proteção de Dados.

As pegadinhas não são exatamente uma novidade, mas na televisão esse tipo de conteúdo costuma ser veiculado após a obtenção da autorização dos envolvidos — há precendentes de condenações a emissoras causadas pela falta dessa autorização. No entanto, no terreno das redes sociais a dinâmica é outra, e é raro o autor do vídeo ter o cuidado de buscar o consentimento das “vítimas”.

Além disso, plataformas como YouTube, TikTok, Facebook e Instagram abrigam lives muito mais problemáticas do ponto de vista jurídico, como os vídeos que exploram pessoas em situação de vulnerabilidade — os moradores da Cracolândia de São Paulo, por exemplo — e aqueles feitos por motoristas por aplicativo sem o conhecimento dos passageiros.

A revista eletrônica Consultor Jurídico consultou alguns estudiosos da LGPD para entender essa situação. A advogada Sandra Sales, especialista em Privacidade e Proteção de Dados do escritório Benício Advogados, explica que a lei trata como dado pessoal toda informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável — como uma imagem, um vídeo gravado ou uma live.

”Assim, quando realizado um tratamento de dados para realização de uma live em rede social, com divulgação de imagem, os responsáveis pela organização do evento devem se resguardar para que tal ação esteja fundamentada em uma das bases legais e providenciar a formalização do instrumento correspondente para resguardar os direitos das partes, seja um termo de consentimento de uso de imagem, um contrato ou qualquer outro documento com referida finalidade”, diz Sandra.

A advogada ressalta que, nos casos em que a imagem de uma pessoa é explorada sem o seu consentimento, a situação deve ser resolvida na esfera criminal ou na civil, isso se a LGPD não se aplicar ao caso.

A advogada Bruna Leite Mattos, por sua vez, entende que a responsabilidade pela violação à LGPD pode recair tanto sobre o produtor de conteúdo quanto sobre as plataformas.

”Se o produtor de conteúdo está explorando indevidamente a imagem de pessoas em situação de vulnerabilidade ou transmitindo informações pessoais sem consentimento, ele pode ser considerado responsável pela violação. Por outro lado, as plataformas também têm a responsabilidade de garantir que os usuários estejam em conformidade com seus termos de uso e com as leis de proteção de dados e podem ser consideradas responsáveis se não tomarem as medidas adequadas para prevenir ou remediar determinadas violações.”

Ela acredita que não existe resposta pronta e que é importante avaliar cada caso individualmente para determinar a responsabilidade específica de cada parte. ”Em especial no que se refere ao artigo 19 do Marco Civil da Internet, que prevê que as plataformas de redes sociais só podem ser responsabilizadas quando descumprirem uma ordem judicial para a remoção do conteúdo.”

Raphael Cittadino, sócio da banca Cittadino, Campos e Antonioli Advogados Associados, defende que tanto o produtor de conteúdo quanto a plataforma, após serem notificados por exposição indevida, devem ser responsabilizados. “Nesse caso, a responsabilidade recai tanto no âmbito do sistema de proteção de dados pessoais (ANPD) quanto no âmbito cível, com direito a reparação financeira pelo uso indevido da imagem.”

Entendimento parecido tem Mirella Andreolasócia do Machado Associados: “Caso a divulgação da imagem não tenha respeitado os casos autorizados pela lei, a pessoa poderia buscar uma indenização, se comprovado algum dano (inclusive moral). E tanto o produtor quanto a plataforma poderiam vir a ser responsáveis, se verificado que se enquadram como operadores ou controladores desse dado pessoal”.

Exposição indevida e governança

Uma pessoa que teve sua imagem explorada indevidamente nesse tipo de conteúdo pode acionar o Poder Judiciário para que o vídeo seja retirado do ar, sem prejuízo da fixação de indenização por ofensa à honra da “vítima” da brincadeira.

“Especialmente quando a imagem é explorada economicamente, a proibição da veiculação da imagem e a fixação de indenização independem de ofensa à honra, considerando que a exploração econômica da imagem de outra pessoa depende impreterivelmente de sua autorização”, afirma Hugo Leonardo Lippi Areas, sócio-diretor da área de Inteligência Forense e Negociação do Medina Guimarães Advogados.

Areas, contudo, lembra que o ordenamento jurídico brasileiro prioriza o direito à liberdade de informação. Nesse contexto, a simples veiculação da imagem de determinada pessoa para fins informativos, de interesse público, não gera dever de retirar o material do ar ou a fixação de indenização.

Por fim, Tatiana Coelho, especialista em proteção de dados do MFBD Advogados, acredita que as plataformas são as responsáveis pela eventual violação à LGPD. “Elas têm o dever de construir um programa de governança, tomando as providências necessárias, orientando e atuando na mitigação de eventuais danos. Cabe à plataforma firmar compromissos e definir de forma clara quais as regras naquele espaço. Mas é preciso lembrar que o Direito não é capaz de acompanhar o avanço tecnológico com a mesma velocidade com que surgem as novidades digitais, o que muitas vezes acaba deixando o indivíduo desamparado em suas garantias. Portanto, há dois grandes desafios que precisam ser enfrentados atualmente: o controle de danos, pela plataforma, e o do Direito em relação à dosagem da lei.”

Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2023, 8h49

 

Fonte: ConJur


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