Desafios à colegialidade e à legitimidade dos precedentes no STF

A pressa e seu preço: desafios à colegialidade e à legitimidade dos precedentes no STF

Por: Hamilton Dias de Souza

O plenário virtual (PV) tornou-se o principal meio de deliberação do Supremo Tribunal Federal. Criado para enfrentar o excesso de processos e ampliado na pandemia, manteve-se como regra mesmo após o fim da crise sanitária. A celeridade, porém, veio acompanhada de dilemas conhecidos: enfraquecimento do contraditório, teses apressadas e menor espaço para a advocacia. É preciso um reequilíbrio: reforçar filtros de acesso e aprimorar o PV, de modo que eficiência não custe a ampla defesa nem a integridade do sistema de precedentes.

A gênese do PV relaciona-se à EC 45/2004 e ao exame da repercussão geral, inicialmente restrito ao juízo de admissibilidade. A partir de 2019–2020, especialmente no contexto da Covid-19, o tribunal expandiu o uso para o julgamento de mérito de múltiplas classes processuais. O ponto crucial é que a ampliação, embora justificável no auge da crise sanitária, consolidou-se como padrão após o retorno à normalidade, convertendo exceção em regra. Em 2024, mais de 99% das decisões colegiadas (Plenário e Turmas) ocorreram virtualmente.

O funcionamento atual do PV acentua sua centralidade: sessões eletrônicas semanais, que duram seis dias úteis, com votos disponibilizados desde o início, sustentações em áudio ou vídeo previamente anexadas e a possibilidade de “destaque” para levar o caso ao Plenário físico, reabrindo-se a votação. Esse modelo garante escala, mas reduz o espaço para o debate síncrono. Sem o confronto de argumentos em tempo real, a deliberação aproxima-se mais da mera soma de votos do que de uma verdadeira construção colegiada.

Há um círculo vicioso que precisa ser nomeado. O tribunal julga virtualmente porque julga demais; e julga demais porque mantém competência amplíssima e filtros de admissibilidade pouco seletivos, ao avocar controvérsias que, em outras jurisdições, ficariam no plano infraconstitucional. O próprio desenho do acesso, com múltiplos instrumentos e baixa autocontenção temática, alimenta o volume que, em seguida, é utilizado para justificar a prevalência do PV. A duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII) é valor constitucional, mas ela também depende de escolhas institucionais de contenção e triagem.

Direito Comparado
Essas ponderações evidenciam o falso dilema que tem servido de justificativa para a prevalência do Plenário Virtual no Brasil: ou se virtualiza quase tudo, ou não se consegue dar vazão ao acervo. Tal raciocínio apenas se sustenta quando o volume de processos é tratado como dado natural, e não como produto de escolhas institucionais. Cortes constitucionais mais maduras resolveram a questão já na porta de entrada, estreitando o funil por meio de filtros mais rigorosos e de autocontenção temática. Com isso, preservaram o plenário físico (ou, ao menos, sessões síncronas) como o locus natural de construção de precedentes.

A experiência comparada, de fato, ilumina o problema. A Suprema Corte norte-americana seleciona, via certiorari (rule of four), um rol diminuto de causas de alta relevância federal, decidindo dezenas de casos por ano [1]. A propósito, mesmo durante o período pandêmico, a necessária migração para o virtual se deu para um modelo síncrono e não para sessões assíncronas como as que regem o PV no Brasil [2]. O modelo de jurisdição constitucional é construído em torno da oralidade, considerada fundamental para a deliberação adequada das questões relevantes.

Situação semelhante observa-se na Corte Constitucional da Itália, que apenas durante a emergência sanitária recorreu, de forma excepcional, a sessões síncronas de julgamento à distância. Em condições ordinárias, a corte mantém um volume anual reduzido de processos, justamente porque o acesso é filtrado por critérios rigorosos de relevância da questão constitucional e requisitos mínimos de plausibilidade [3]. A ilustrar a discrepância com o modelo brasileiro, entre 2009 e 2023, a Corte proferiu, em média, cerca de 295 decisões por ano [4].

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht) também recorre a filtros legais e discricionais estritos. Embora receba um volume significativo de demandas (aproximadamente 6 mil a 7 mil por ano) [5], uma ínfima parcela de queixas constitucionais é efetivamente admitida [6]. Ademais, é difícil identificar, nas pesquisas disponíveis, qualquer dado que indique a existência de sessões assíncronas análogas ao Plenário Virtual do STF, revelando a atipicidade do instrumento em matéria de jurisdição constitucional.

Preocupações
O contraste com o Brasil é didático: aqui, competência expansiva, múltiplas portas de entrada, filtros frouxos somam-se na formação de uma avalanche de casos. Tal volume, então, é invocado para naturalizar o PV como regra, quando na verdade ela deriva de escolhas que podem (e devem) ser revistas. Onde há filtros e autocontenção, o plenário segue sendo espaço de construção colegiada; onde não há, o virtual vira única válvula de escape, ainda que às custas da qualidade dos precedentes e da participação da advocacia.

O diálogo entre esse pano de fundo e a cultura dos precedentes inaugurada e adensada pelo CPC/2015 suscita preocupações. O artigo 489, §1º, impõe fundamentação analítica, exigindo distinguishing ou overruling quando se afasta precedente. O artigo 927 do CPC elenca os precedentes qualificados e projeta a força normativa de decisões que, no STF e no STJ, se consolidam como teses. Desse modo, sobretudo no âmbito do STF, o sistema deve operar a partir de teses vinculantes, de forma que a orientação irradiada dos julgados não se limite ao raciocínio de um caso específico, mas se traduza na “síntese normativa” final, dotada de caráter geral e vinculante.

Quando as teses nascem em ambiente virtual, todavia, sem a devida fricção dialógica robusta, surge um risco concreto do seu empobrecimento. Votos extensos, lidos isoladamente, podem ocultar lacunas de enfrentamento; placares expressivos podem disfarçar dissensos mal resolvidos; e a publicidade assíncrona, embora meritória, não substitui a verificação pública de que argumentos centrais da defesa foram efetivamente ponderados. É aqui que o PV precisa de aprimoramentos procedimentais para demonstrar, de forma verificável, que o contraditório foi lealmente incorporado antes da fixação da tese.

Face estrutural do problema
A participação da advocacia é peça estrutural desse equilíbrio. A colegialidade autêntica não se resume ao diálogo entre ministros; pressupõe que a atuação técnica do advogado, por meio da seleção de fatos juridicamente relevantes, construção da moldura normativa e teste público das alternativas, seja considerada e, quando afastada, rejeitada com razões específicas. No PV, a sustentação oral gravada concorre com interfaces que privilegiam a leitura do voto e a contagem de placar, o que tende a reduzir a densidade do contraditório.

O resultado é um déficit de dialogicidade que enfraquece a tese fixada e retroalimenta uma atuação demasiadamente casuística da corte. Nesse contexto, é preciso recordar que a vocação maior do STF não deve ser solucionar disputas pontuais com baixa projeção normativa, mas fixar princípios constitucionais e balizas que orientem o sistema judicial como um todo. Quando o tribunal se dedica a teses excessivamente específicas, com reduzida aplicabilidade para além do caso concreto, fragiliza-se a própria lógica do precedente vinculante. Ao contrário, a força normativa de suas decisões deveria residir em orientações aptas a guiar os tribunais e reduzir a necessidade de novas intervenções casuísticas.

Para isso, nada substitui enfrentar a face estrutural do problema: é preciso redesenhar os filtros de acesso ao Supremo. A repercussão geral, por exemplo, pode ser requalificada mediante critérios mais densos de transcendência, à semelhança de experiências estrangeiras, de modo a reservar o Plenário físico (ou o síncrono) para causas de alta densidade constitucional e impacto sistêmico. Em paralelo, devem ser gestadas soluções concretas e imediatas para os problemas dos julgamentos virtuais assíncronos.

Com efeito, a abertura do caso no PV deve ancorar-se obrigatoriamente na sustentação da defesa, com reprodução automática ou confirmação explícita de visualização. Cada voto poderia conter um campo estruturado “Pontos da defesa enfrentados”, com resposta objetiva a até cinco tópicos indicados pelas partes, preferencialmente com timestamps do vídeo. Durante a janela da sessão, um canal assíncrono e datado de perguntas dos ministros e réplicas dos advogados elevaria a qualidade do diálogo, sem sacrificar a eficiência do formato virtual.

Nos casos em que as partes demonstrem relevância econômica, social ou política nacional, a conversão do julgamento para o presencial deveria ser não apenas possível, mas provável. Ao menos, tais pedidos deveriam levar o caso para sessão eletrônica síncrona por videoconferência. Ainda, no pós-julgamento, um regime funcional de embargos de declaração para depuração textual da tese (quando argumentos centrais não foram enfrentados) deixaria claro que omissão qualificada não é “rediscussão”, mas correção de rumo.

Ferramenta útil
A objeção previsível é a de sempre: sem PV onipresente, a fila volta a crescer. A resposta está em combinar celeridade com responsabilidade deliberativa. O próprio artigo 489 do CPC oferece o roteiro do que significa decidir bem no paradigma dos precedentes; e o artigo 927 lembra que, quando o tribunal fala por teses, fala em linguagem quase normativa. Isso exige repensar os filtros do tribunal, reforçar as garantias de participação e estabelecer um controle recíproco entre argumentos. Nas recentes advertências de Fernando Facury Scaff, não basta acelerar; é preciso segurança jurídica e previsibilidade.

Em síntese, o PV não é um mal em si, tampouco um atalho ilegítimo. Ele foi ferramenta útil em um contexto excepcional e pode continuar a sê-lo se reancorado em garantias mínimas de dialogicidade e se articulado a filtros sérios de admissibilidade. O que se propõe é um pacto institucional: (1) requalificar a repercussão geral, com autocontenção temática; (2) reservar ambientes síncronos para causas estruturantes; (3) estruturar o PV com trilhos que documentem o enfrentamento da defesa; e (4) aperfeiçoar mecanismos integrativos pós-julgamento.

Nesses termos, o PV não pode ser assumido como uma solução “natural” de um destino trágico chamado volume; trata-se de efeito de escolhas que podem ser refeitas. Se o STF escolher melhor as suas batalhas, e quando falar por teses falar com debate real, preservará o que importa: precedentes estáveis, previsíveis e legítimos. Esse é o padrão das cortes que inspiram o mundo e a alternativa concreta ao volume que hoje se invoca para justificar a exceção permanente.

Com isso, é possibilitado ao STF reafirmar seu papel fundamental de Corte Constitucional e, ao mesmo tempo, preservar a força normativa de suas teses, agora lastreadas em contraditório efetivo e fundamentação analítica consistente. No fim, a legitimidade do sistema não depende apenas do “o quê” se decide, mas do “como” se decide e o Brasil precisa de um Supremo que ouça melhor seus interlocutores. Para tanto, é essencial reconhecer que a ampla defesa não é obstáculo à eficiência; é, antes, o seu alicerce.

Hamilton Dias de Souza é sócio-fundador do Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Leia em Consultor Jurídico (ConJur)


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