Caráter excepcional da tutela cautelar antecedente preparatória da RJ

Caráter excepcional da tutela cautelar antecedente preparatória da RJ

24 de maio de 2023, 7h09

Por Mirella Guedes e Lucila Estevam Dante

A Lei 14.112/20, também denominada de nova Lei de Recuperação Judicial e Falência, trouxe diversas alterações à 11.101/05 (LRF). Dentre elas, destaca-se a positivação da tutela cautelar em caráter antecedente, procedimento preparatório previsto no artigo 305 e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), que recentemente se tornou objeto de debate em razão do pedido de tutela preparatória de recuperação judicial requerido pelas Lojas Americanas.

A medida possibilita a antecipação dos efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial, notadamente a suspensão das execuções e atos de constrição em face do devedor.

Com a reforma, o instrumento passou a ser previsto em duas hipóteses na LRF, quais sejam: 1) no artigo 6º, §12, que autoriza a concessão da tutela preparatória de recuperação judicial quando atendidos os requisitos previstos no artigo 300 do CPC; e 2) no artigo 20-B, inciso IV, §1º, que admite a concessão da tutela de urgência cautelar às empresas que estejam negociando as dívidas com seus credores, anteriormente ao ajuizamento da recuperação judicial.

A primeira hipótese, que será objeto de análise no presente artigo, trata da concessão da tutela para antecipar os efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial, total ou parcialmente, desde que existam elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

Ao requerer a medida, a empresa devedora poderá demonstrar o perigo de dano através da possibilidade de constrição de seus bens por credores sujeitos à recuperação judicial, o que poderia comprometer uma eventual negociação coletiva para superação da crise econômico-financeira. Por sua vez, o “fumus boni iuris”, ou seja, a probabilidade de deferimento do processamento da recuperação judicial, deverá ser comprovada por meio do preenchimento dos requisitos do artigo 48 da LRF.

Preenchidos os requisitos mencionados, a antecipação dos efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial será concedida total ou parcialmente, ou seja, poderão ser suspensas todas as execuções ajuizadas em face do devedor, ou somente aquelas que representem perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, devendo a empresa requerer a recuperação judicial no prazo de 30 dias, na forma do inciso I do §1º do artigo 303 c/c 308 do CPC.

A respeito do procedimento, o doutrinador Marcelo Barbosa Sacramone salienta o caráter excepcional da medida, consignando que [1]:

“A antecipação dos efeitos do processamento da recuperação judicial não pode se revestir de benefício ao devedor por prazo indeterminado, sob pena de prejuízo à satisfação dos interesses dos credores e de implicar detrimento aos objetivos que a própria recuperação judicial procurou tutelar”.

Nessa linha, o magistrado, ao deferir a medida, deverá ter muita cautela, fundamentando devidamente as razões da concessão da tutela e estabelecendo um prazo de validade limitado, de modo a não permitir que o devedor se utilize desse mecanismo para seu próprio benefício, deixando de formular o pedido de recuperação judicial no prazo legal e tomar as providências necessárias de forma célere, em detrimento da coletividade de credores.

No âmbito jurisprudencial, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), conferindo segurança jurídica ao instrumento, proferiu decisão denegando a tutela requerida por uma devedora. O fundamento foi o de que, embora a lei autorize a tutela antecipada para fins de processamento da recuperação judicial, o pleito deve estar devidamente instruído, de modo a evidenciar o real e iminente prejuízo que o prosseguimento das cobranças acarretará à atividade empresarial, sendo insuficiente, para tanto, a mera existência de execuções em face da devedora [2].

Outras questões polêmicas acerca da aplicabilidade da medida também vêm sendo debatidas. A primeira diz respeito à contagem do prazo de stay period — se este deve se iniciar a partir da concessão da tutela, ou a partir do deferimento do processamento da recuperação judicial. A segunda questão é relativa à possibilidade de liberação de valores e bens constritos em ações em curso em face do devedor, quando da concessão da tutela.

Em relação à primeira questão, o entendimento que parece mais correto, acompanhado, inclusive, pela maior parte da jurisprudência paulista, é no sentido de que o stay period deverá se iniciar a partir do deferimento da tutela, devendo o período de vigência da liminar ser descontando do prazo de suspensão das ações previsto no artigo 6º, §4º, da LRF, de modo a evitar a indevida prorrogação desse prazo.

No que tange à liberação de valores e bens constritos em ações em curso em face do devedor, quando da concessão da tutela, entende-se que tal medida não se justifica, ao menos enquanto não houver decisão sobre o deferimento do processamento ou não da recuperação judicial, devendo ser resguardados eventuais direitos dos credores, conforme já decidiu a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP [3].

Portanto, embora a tutela cautelar em caráter antecedente tenha sido inserida apenas recentemente na LRF, ainda não sendo amplamente utilizada, já surgiram diversas questões acerca da aplicabilidade do instituto. É, sendo certo que caberá ao Judiciário solucionar tais controvérsias, de modo a conferir segurança jurídica à medida, e evitar que ela seja utilizada pelos devedores indevidamente, como forma de se esquivar ao cumprimento de suas obrigações, em detrimento dos credores e da coletividade.

[1] Referência: 2022. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência / Marcelo Barbosa Sacramone. Imprenta: São Paulo, Saraiva jur, 2022. P. 96.

[2] Nesse sentido: “RECUPERAÇÃO JUDICIAL — Tutela Cautelar Antecedente – Pedido de antecipação dos efeitos do processamento da recuperação judicial — Artigo 6º, §12 da lei 11.101/05 — Medida que somente pode ser concedida caso haja probabilidade do direito, risco ao resultado útil do processo ou perigo de dano e a presença dos documentos elencados no artigo 48 da Lei 11.101/05 — Ausência de elementos que autorizam a concessão da medida – Falta de certidões para aferir se já foram feitos pedidos de recuperação judicial — Inexistência de medidas capazes de provocar a interrupção da empresa — Não documentado a instauração do procedimento de conciliação e mediação, conforme exige o artigo 20-B, §1º, da Lei 11.101/05 —Decisão mantida – Recurso improvido”.

(TJ-SP – AI: 20042983520228260000 SP 2004298-35.2022.8.26.0000, relator: J. B. Franco de Godoi, Data de Julgamento: 13/05/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 13/05/2022).

[3] Agravo de Instrumento – Tutela cautelar antecedente a pedido de recuperação judicial, tendo por objeto a antecipação dos efeitos do “stay period”, inclusive para fim de liberação de bens e valores já constritos em ações em curso — Deferimento da liminar — Inconformismo de credora —Acolhimento em parte — Tutela de urgência para antecipação total ou parcial dos efeitos do processamento do pedido de recuperação judicial encontra, atualmente, expresso amparo legal (artigo 6º, §12, da Lei nº 11.101/2005, incluído pela Lei nº 14.112/2020)- Por outro lado, há indícios da prática de atos de dissipação patrimonial, atos de falência, fraude contra credores e uso fraudulento do instituto da recuperação judicial pela requerente — Necessidade de constatação prévia, já determinada em primeiro grau, para apurar esses indícios e informar futura decisão sobre o deferimento ou não do processamento do pedido de recuperação judicial — Manutenção da liminar para suspensão das execuções, a fim de resguardar a utilidade da decisão sobre o processamento, mas revogação no ponto em que autoriza a liberação, em favor da devedora, de bens e recursos anteriormente constritos — Manutenção das constrições já efetuadas antes da prolação da decisão agravada, sem liberação em favor da devedora ou dos credores, até decisão do juízo recuperacional a respeito, se deferido o processamento do pedido de recuperação judicial, ou indeferimento dele, caso em que a liminar deferida em primeiro grau ficará automaticamente revogada, na íntegra — Decisão agravada reformada em parte — Recurso provido em parte.

(TJ-SP – AI: 22696387320218260000 SP 2269638-73.2021.8.26.0000, Relator: Grava Brazil, Data de Julgamento: 16/12/2021, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 16/12/2021).

Mirella Guedes é sócia da área de Recuperação de Crédito de Chiarottino e Nicoletti Advogados. 

Lucila Estevam Dante é assistente jurídica de Chiarotttino e Nicoletti Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 24 de maio de 2023, 7h09

 

Fonte: ConJur


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