Aprovada cota de 30% em concursos para negros, indígenas e quilombolas
O Senado aprovou nesta semana o Projeto de Lei nº 1.958/2021, que amplia de 20% para 30% o percentual de reserva de vagas em concursos públicos federais para candidatos pretos, pardos, indígenas e quilombolas. A proposta segue agora para sanção presidencial e, uma vez promulgada, valerá para concursos da administração pública federal direta e indireta, fundações, empresas públicas e também para contratações temporárias. Além disso, a nova lei se estenderá a empresas privadas que mantêm vínculo com a União — como aquelas que atuam em regime de parceria público-privada ou concessão.
A mudança representa uma nova etapa na política de ações afirmativas no Brasil. Segundo o texto, os candidatos que optarem por concorrer às vagas reservadas participarão, ao mesmo tempo, da disputa por vagas de ampla concorrência. Caso a autodeclaração de pertencimento étnico-racial seja indeferida após o procedimento de confirmação previsto em edital, o candidato não será eliminado automaticamente — poderá continuar no processo seletivo pela ampla concorrência, desde que tenha alcançado pontuação mínima para seguir nas etapas anteriores.
A advogada Cecília Mello avalia que a proposta aprovada está alinhada ao entendimento já consolidado nos tribunais superiores e representa a continuidade da política afirmativa prevista na Constituição. “Não antevejo essa judicialização da matéria, mesmo porque a questão está cristalizada, em termos de posicionamento favorável, nos tribunais superiores”, afirma. Segundo ela, o novo marco normativo “é harmônico com a Constituição Federal e segue o entendimento do STF”.
Em 2023, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a validade da Lei nº 12.990/2014, que estabelecia a cota de 20% e determinou sua prorrogação até que o Congresso Nacional aprovasse uma nova regulamentação — o que se concretiza agora com o PL 1.958/2021. “Havendo o reconhecimento de que as cotas anteriormente instituídas ainda não atingiram o seu objetivo principal, há de se promover a adequação com uma nova lei, inclusive com a ampliação do percentual de reserva de vagas, sobretudo sob a perspectiva de continuarmos em busca de uma sociedade igualitária”, afirma Cecília Mello.
Procedimento de verificação e segurança jurídica
Um dos pontos centrais do texto aprovado diz respeito à verificação da autodeclaração. Pelo projeto, a autodeclaração será considerada válida quando acompanhada de características que permitam o reconhecimento social como pessoa negra, indígena ou quilombola. Os editais deverão prever um procedimento complementar, com comissões avaliadoras e possibilidade de recurso.
Para garantir segurança jurídica e evitar judicialização excessiva, a especialista defende a padronização dos critérios de avaliação em âmbito nacional. “A fixação de critérios objetivos em sede de regulamentação federal, assim como a formação de comissões compostas por profissionais com expertise étnico-racial e publicização de todas as informações relacionadas ao certame, são instrumentos que podem conferir maior segurança jurídica e evitar judicialização excessiva em relação ao procedimento de heteroidentificação.”
Segundo o texto do projeto, a descaracterização da autodeclaração exigirá decisão unânime por parte do colegiado responsável pela verificação. Em caso de suspeita de má-fé ou fraude, o candidato poderá ter sua participação anulada, ou mesmo ser desligado do cargo, se a nomeação já tiver ocorrido.
Expansão para o setor privado vinculado à União
A nova legislação também se estende às empresas privadas que mantêm vínculo com o poder público federal. A medida abrange contratos administrativos, convênios, parcerias público-privadas e concessões. Na prática, isso significa que companhias que prestam serviços para o governo federal ou operam concessões públicas terão que reservar parte de suas vagas a candidatos contemplados pelas cotas.
Para Cecília Mello, essa ampliação é compatível com uma tendência global de incorporar ações afirmativas às práticas institucionais, inclusive nas relações entre o setor público e a iniciativa privada. “A implementação de ações afirmativas impacta profundamente todas as esferas das relações sociais. Essa é uma tendência que tem se observado globalmente. Trata-se de um avanço significativo da sociedade no caminho da igualdade.”
Na avaliação da advogada, países que adotam leis com esse perfil também acabam influenciando padrões de conduta empresarial e institucional em outras jurisdições. “Quando um país adota uma lei nesse sentido, ele não apenas promove mudanças internas, como também estabelece uma base sólida para o cumprimento de políticas públicas e parâmetros que orientam até mesmo relações privadas e transnacionais.”
Empresas e diversidade: reflexos possíveis
Cecília Mello lembra que muitas empresas já adotam, voluntariamente, programas de inclusão, diversidade e equidade, independentemente de obrigações legais. Com a nova legislação, essas práticas passam a ganhar um novo contorno jurídico.
“Diversas empresas privadas já têm adotado ações afirmativas como parte de suas políticas de inclusão, diversidade e equidade. Entre países, embora os marcos legais variem, muitas empresas, principalmente multinacionais, vêm implementando práticas para promover a igualdade que vão além dos territórios de suas sedes e que servem de requisitos para contratações e relações comerciais.”
A proposta, portanto, insere o Brasil em um cenário de maior alinhamento com práticas internacionais de inclusão institucional. Na prática, poderá impactar desde os processos seletivos internos até cláusulas contratuais em futuras licitações e parcerias com o setor público.
Revisão em dez anos
O projeto de lei aprovado pelo Senado prevê que o programa de cotas seja monitorado pelo Poder Executivo, com revisões periódicas a cada dez anos. A intenção é que os efeitos da política sejam avaliados com base em indicadores de inclusão, representatividade e efetividade das medidas afirmativas.
A adoção de um prazo de revisão periódica, segundo os especialistas, é um sinal de amadurecimento institucional. O novo marco legal deverá substituir a norma anterior (Lei nº 12.990/2014), que vigorava desde 2014 com reserva de 20% das vagas. A expectativa é que os editais de concursos federais passem a incorporar a nova regra nos próximos ciclos seletivos.
O projeto agora aguarda a sanção do presidente da República. Uma vez publicado, caberá aos órgãos da administração federal editar os regulamentos complementares necessários para viabilizar a aplicação prática da lei — desde a definição dos critérios de verificação até a adaptação dos contratos administrativos com empresas vinculadas à União. O debate sobre cotas raciais e inclusão social seguirá no centro das políticas públicas brasileiras nos próximos anos.