Segurança jurídica exige eficiência processual e controle sobre o uso estratégico de precedentes

Segurança jurídica exige eficiência processual e controle sobre o uso estratégico de precedentes

Murilo Ferreira e Luiz Cândido

A segurança jurídica exige uso estratégico de precedentes, aliando técnica, coerência e eficiência para garantir previsibilidade e isonomia no contencioso cível.

A consolidação de um sistema jurídico eficiente envolve coerência e previsibilidade, e este ponto é um dos maiores desafios do Brasil. Na prática do contencioso cível, veem-se diariamente situações em que a necessidade de celeridade enfrenta a obrigação de garantir estabilidade e isonomia nas decisões judiciais.

Preocupar-se com a governança e a previsibilidade em escala, e aliar a visão técnica do advogado especialmente focado na atuação técnica face aos tribunais do país, evidencia a necessidade de estar atento à aplicação prática e estratégica dos precedentes judiciais no enfrentamento do processo.

A partir do advento do CPC/15, o sistema de justiça brasileiro foi convocado a trilhar uma nova rota. A introdução formal do modelo de precedentes, embora convivendo com a tradição do civil law, estabeleceu o dever de respeito e observância a decisões reiteradas dos tribunais, buscando evitar oscilações que pudessem comprometera confiança no Direito.

Portanto a ideia central é fortalecer a segurança jurídica e promover a isonomia decisória. Na prática, isso exige mais do que fidelidade à norma legal; por vezes requer dos tribunais respeito à jurisprudência e, dos advogados, responsabilidade estratégica na atuação.

No contexto do contencioso, a eficiência processual deixou de ser uma escolha e tornou-se uma imposição operacional. O congestionamento judicial exige respostas rápidas, e o uso estratégico dos precedentes qualificados além da atuação estratégica, para cumprir função decisiva ao processo.

Ferramentas como o IRDR, IAC, recursos repetitivos e súmulas vinculantes permitem decisões uniformes e replicáveis, que reduzem a litigiosidade artificial, evitam retrabalho judicial e promovem segurança jurídica.

Contudo, é fundamental que a eficiência não sacrifique o conteúdo da justiça. A governança de precedentes deve ser acompanhada por mecanismos de controle institucional e análise qualificada, inclusive com uso de inteligência de dados, para identificar padrões, antecipar riscos e alinhar teses jurídicas ao entendimento consolidado dos tribunais.

Um exemplo claro da relevância da governança de precedentes pode ser observado no Tema 98 do IRDR no TJ/MG, que discute se o consumidor que não devolve valores creditados por empréstimo não contratado pode responder por dano moral. Antes da instauração do incidente, havia decisões contraditórias: algumas câmaras afastavam o dano moral por entenderem que o consumidor era vítima; outras o reconheciam com base na inércia do cliente após a ciência do crédito indevido. Esse cenário gerava insegurança jurídica para instituições bancárias, expostas à multiplicação de condenações baseadas em critérios subjetivos, mesmo nos casos em que não houve conduta dolosa ou falha atribuível à instituição. Havia, inclusive, exploração deliberada de juízos mais inclinados a presumir o dano, ampliando o risco sistêmico e a litigância oportunista.

Porém, o sistema de precedentes não deve ser encarado como uma camisa de força, mas sim como um instrumento de racionalidade jurídica e equilíbrio. Sua legitimidade não decorre da simples repetição de conclusões anteriores, mas da autoridade conferida ao fundamento jurídico essencial da decisão judicial. Trata-se da regra de direito extraída do caso concreto que justifica o desfecho adotado pelo órgão jurisdicional, representando o núcleo normativo da decisão.

A vinculação a decisões reiteradas não elimina a possibilidade de argumentação jurídica. Ao contrário, exige do advogado domínio técnico para lidar adequadamente com a aplicação ou não dos precedentes. Nessa seara, destacam-se duas ferramentas fundamentais: a diferenciação do caso concreto em relação ao precedente e a superação de entendimentos consolidados.

A diferenciação consiste na demonstração de que o caso analisado apresenta elementos fáticos ou jurídicos relevantes que o afastam do alcance do precedente aplicável, tornando legítima a não vinculação. Já a superação ocorre quando se sustenta, e o tribunal reconhece que determinado precedente está superado, seja por alteração legislativa, mudança social relevante ou evolução jurisprudencial, autorizando a adoção de um novo entendimento.

Tais técnicas são essenciais para garantir que o sistema de precedentes funcione com flexibilidade, coerência e responsabilidade institucional, permitindo ao intérprete do direito não apenas aplicar, mas também participar da construção e aprimoramento da jurisprudência, permitindo demonstrar, com clareza, a inaplicabilidade ou a superação de entendimentos anteriores.

É imperioso ressaltar que a adequada aplicação dos precedentes qualificados exige das partes não apenas a invocação genérica de teses consolidadas, mas a efetiva demonstração da especificidade do dano alegado, da pertinência das provas produzidas e da fidelidade do conteúdo fático aos elementos reais do litígio. O sistema de precedentes não se constrói sobre abstrações, mas sobre a correta delimitação do caso concreto e sua correlação com os fundamentos jurídicos essenciais que lastrearam decisões anteriores.

Cabe às partes, portanto, o ônus de delimitar com precisão o quadro fático e jurídico da demanda, permitindo ao julgador identificar se o precedente efetivamente se amolda à controvérsia ou se se impõe sua diferenciação. Essa postura técnica e propositiva é fundamental para que o sistema de precedentes atenda não só à eficiência processual, mas também ao direito material do jurisdicionado, prevenindo a aplicação distorcida ou automática de entendimentos jurisprudenciais.

Além disso, o instituto da reclamação constitucional previsto no art. 988 do CPC se tornou um importante mecanismo de controle, garantindo a eficácia real dos precedentes e punindo a desobediência judicial institucionalizada.

No cenário atual, a advocacia estratégica assume novo protagonismo técnico. No tribunal, os precedentes não são palavras mortas, mas sim instrumentos vivos, capazes de orientar, limitar e transformar decisões. Para o advogado que atua na linha de frente, seja em sustentações orais ou na elaboração das peças decisivas do processo, o domínio técnico deixou de ser diferencial para se tornar exigência.

É indispensável saber identificar, com precisão, o fundamento jurídico que efetivamente vincula o julgamento anterior, separando o que é norma aplicável daquilo que representa mero comentário. Também é essencial dominar a técnica da diferenciação e saber demonstrar, com clareza, porque o caso em análise foge do parâmetro traçado pelo precedente, revelando peculiaridades jurídicas ou fáticas que justificam solução distinta. Mais do que isso, é preciso antecipar movimentos da jurisprudência, compreender a lógica dos tribunais e contribuir ativamente para a integridade do sistema.

Aplicar precedentes de forma estratégica é, portanto, um exercício que exige equilíbrio entre técnica refinada, visão institucional e compromisso com a construção de um Judiciário mais previsível e coerente. É nesse espaço que o advogado contemporâneo reafirma seu papel: não como mero aplicador de entendimentos, mas como agente de interpretação qualificada e transformação responsável do Direito.

Leia mais em Migalhas


Posts relecionados

Logo Conjur
Na epidemia, é preciso priorizar lado humano na aplicação do Direito Penal

Para o criminalista José Luis de Oliveira Lima, na quarentena as interações entre advogados...

Bidino & Tórtima Advogados inaugura sede em São Paulo

Comandado pelos advogados Claudio Bidino e Fernanda Tórtima, o escritório tem atuação exclusiva...

Fale conosco

Endereço
Rua Wisard, 23 – Vila Madalena
São Paulo/SP
Contatos

(11) 3093 2021
(11) 974 013 478