Novas regras de outorgas e de acesso à rede no setor elétrico

Novas regras de outorgas e de acesso à rede básica no setor elétrico

Proteção aos investidores e facilitação do processo de conexão das usinas?

 

Por Raphael Gomes e Renato Edelstein 

 

Não é de hoje que o setor de energia elétrica brasileiro atravessa um momento delicado. O modelo atual, que foi instituído pela Lei 10.848/2004, já não é capaz de capturar todas as mudanças tecnológicas, sociais, ambientais e econômicas dos últimos 20 anos.

A chamada “corrida do ouro” por outorgas de geração — em razão da publicação da Lei 14.120/21, que dispôs que somente os pedidos de outorga realizados até 2 de março de 2022 seriam beneficiados com o desconto nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e de distribuição — causou uma inegável desproporção entre o número de outorgas requeridas e a capacidade do Sistema Interligado Nacional (SIN) de escoamento da energia caso todos esses empreendimentos se viabilizem.

É o velho dilema: a capacidade de expansão da rede de transmissão é substancialmente mais vagarosa do que o aumento — expressivo nos últimos tempos — da geração. Há, portanto, um inegável déficit na transmissão, que resulta em escassez de escoamento de energia elétrica pelas geradoras.

Como resultado da “corrida do ouro” pelas outorgas — e para além do chamado “dia do perdão” já comentado em texto anterior —, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aprovou em 28 de agosto uma série de alterações às regras aplicáveis à obtenção de outorga de autorização para exploração de centrais geradoras de fontes alternativas (eólicas, fotovoltaicas, termelétricas e híbridas), bem como para o acesso dos empreendimentos ao sistema de transmissão.

Tais regras e procedimentos eram conhecidos há muito tempo por quem trabalha e milita no setor. Conceitos como “informação de acesso” e o próprio momento para assinatura do contrato de uso do sistema (conhecimento como CUST e que garante o escoamento da energia que será produzida ao grid) eram questões corriqueiras que não despertavam maiores preocupações.

Agora, com as mudanças implementadas pela Aneel, o setor de energia passa a olhar novamente para essas questões, especialmente considerando a criação de novos compromissos financeiros (garantias) para a realização das solicitações de acesso.

As relevantes mudanças foram efetivadas por meio das Resoluções Normativas 1.069/2023 e 1.071/2023.

Dentre tantas mudanças, vale um olhar mais aprofundado em uma das maiores alterações: passa a ser obrigatória a apresentação de garantia financeira pelo interessado no momento do protocolo da solicitação do parecer de acesso, em valor equivalente a três vezes o encargo anual de uso do sistema de transmissão (EUST) da central geradora. A garantia deve permanecer válida por 90 dias, mesmo prazo de validade do parecer de acesso.

Ou seja, diferentemente da regra anterior, que previa que a garantia financeira somente seria apresentada após a assinatura do próprio CUST, a partir de agora os empreendedores deverão apresentar a garantia já no momento da solicitação de acesso, o que poderá se dar antes mesmo da própria emissão da outorga pela Aneel.

A mudança implementada tem como objetivo, segundo a agência, evitar que sejam solicitados e emitidos pareceres de acesso de projetos que sabidamente não sairão do papel, ocupando o lugar na fila da conexão de projetos que têm condições de serem viabilizados.

A implementação do mecanismo de garantia desde a solicitação de acesso tende a desincentivar pedidos de pareceres sem fundamentos financeiros e condições técnicas, já que haverá um custo relevante com o aporte das garantias.

Outro ponto relevante é o fato de que a assinatura do CUST passará a acontecer na fase anterior, sendo requisito necessário para obtenção de outorga, invertendo o que acontecia antes da vigência das novas regras. A partir da assinatura do CUST, haverá o prazo fixo de até 36 meses para início de execução do CUST no caso de fontes alternativas e de 60 meses para fonte hídrica.

Apesar disso, o início da execução do CUST somente poderá ser prorrogado uma única vez e por um prazo de até 12 meses, desde que pago o encargo mensal proporcional aos meses de prorrogação, o chamado encargo de postergação.

Aqui está um ponto delicado da nova sistemática. A Aneel estabeleceu que o início da execução do CUST somente poderá ser prorrogado por até 12 meses, e desde que pago o encargo de postergação. Ou seja, o empreendedor que solicitar a postergação do CUST irá pagar o encargo de qualquer maneira, o que parece não fazer sentido jurídico ou econômico.

Para além disso, curioso notar que as novas regras em nenhum momento tratam sobre o reconhecimento de excludente de responsabilidade para fins de postergação do CUST ou mesmo postergação do início da operação das usinas. A Aneel se restringe a exigir que o agente apresente “justificativas fundamentadas para o atraso”.

Considerando que desde 2016 existe norma legal tratando expressamente sobre pedidos de excludentes de responsabilidade, seria adequado que uma nova regulação não fosse editada sem qualquer menção ao dispositivo legal ou, ao menos, às suas diretrizes.

Isso porque, no caso de excludente de responsabilidade, a norma legal (Lei 13.360/2016) determina a postergação de obrigações. Todavia, o dispositivo de lei, por óbvio, não traz o detalhamento de quais seriam as obrigações, o que deveria ter sido feito pela norma regulatória.

Por fim, cabe destacar outra alteração, que diz respeito ao prazo para implantação em contraposição ao início da execução do CUST.

Os empreendimentos outorgados terão o prazo limite de 54 meses, contados da publicação da outorga, para a entrada em operação comercial, devendo o agente informar os marcos intermediários de implantação para fins de acompanhamento e fiscalização da evolução das obras pela Aneel. Nada obstante, conforme Resolução Normativa 1.069/2023 e como já abordado, o CUST entrará em execução em no máximo 36 meses contados da celebração.

Essa definição de prazos pode acarretar um relevante descasamento entre a execução do CUST — pagamento do encargo de conexão — e o início da operação comercial do empreendimento, motivo pelo qual o tratamento da excludente de responsabilidade pela Aneel será de suma importância para a compatibilização de tais marcos no caso de comprovado evento externo.

A evolução das normas para autorização de construção e acesso de empreendimentos de geração é sempre importante e deve ser discutida.

A grande dúvida é se estas alterações serão capazes de equalizar a geração frente à escassez da transmissão e criar um processo mais cristalino e célere para a obtenção das outorgas e conexão do sistema de transmissão. E ainda, evitar questionamentos e judicialização sobre tais temas, o que tem sido frequente nos últimos tempos, devido à conhecida imprevisibilidade jurídica que existe no país, mas também muito em razão de mudanças de posicionamento do próprio regulador em relação à matriz de risco dos geradores.

 

RAPHAEL GOMES – Sócio da área de energia do Lefosse. Membro da Comissão de Energia da OAB-SP e presidente do IBDE (Instituto Brasileiro do Direito de Energia). Com reconhecida atuação como advogado especializado em energia, iniciou sua carreira no Grupo Endesa, tendo ocupado, por quase dez anos, o cargo de gerente jurídico-regulatório na CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). Formado em direito pela UFRJ, com MBA em direito societário e especializações em direito processual civil e direito regulatório de energia elétrica pela FGV Rio

 

RENATO EDELSTEIN – Advogado de Energia do Lefosse

 


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