Criatividade judicial e o papel do STF

Criatividade judicial e o papel do STF

Por Diogo Leonardo Machado de Melo, Hamilton Dias de Souza, Humberto Bergmann Ávila, José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, Miguel Reale Júnior e Renato de Mello Jorge Silveira

13/10/2025 | 03h00

A separação dos Poderes é um dos fundamentos estruturantes do Estado Democrático de Direito. Com ele, busca-se evitar a concentração de poder e assegurar o equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário. No entanto, o avanço do protagonismo judicial – especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) – tem despertado legítimas preocupações quanto aos contornos e aos limites dessa atuação.

O Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), por meio desta comissão, já se manifestou contra o uso excessivo das decisões individuais em matérias estruturantes. Reitera-se que essa crítica não se dirige à instituição – cuja função de guardiã da Constituição é central –, mas ao uso reiterado de mecanismos que concentram poder decisório nas mãos de um único integrante da Corte, à margem do debate colegiado e da deliberação plural.

O déficit de colegialidade, agravado pelo uso frequente de medidas monocráticas, contribui para a erosão da autoridade institucional do Supremo. A crise institucional se aprofunda, à medida que se agrega a atuação do STF como legislador positivo.

A distorção ocorre quando a Corte cria comandos normativos inéditos – à revelia do processo legislativo e a pretexto de meramente interpretar o texto constitucional – interferindo em debates ainda pendentes e candentes no Parlamento, como a demarcação de terras indígenas, a regulação das plataformas digitais ou em temas sensíveis já constantes no projeto de reforma do Código Penal, por exemplo. Inverte-se a lógica do sistema de freios e contrapesos e compromete-se a própria função jurisdicional.

Nesse caso, no afã de proteção do Estado de Direito, e com a justificativa de tutela de princípios, está a se caminhar para além da norma posta, avançando num campo criacional do neoconstitucionalismo, cuja realidade se verifica, como já alertamos, no status conferido ao Regimento Interno pelo próprio STF.

É preciso reconhecer que, em diversos casos, a atuação do STF decorre da inércia do Legislativo. No entanto, o enfrentamento dessas omissões deve observar critérios objetivos e constitucionalmente previstos. A própria Constituição oferece instrumentos para tanto, como a ação direta por omissão ou a formulação de notas técnicas orientativas, que sinalizam a urgência de regulamentação sem invadir competências legislativas. É inadequado e arriscado que a demasiada judicialização da política leve o Supremo a tomar decisões de cunho político, naquilo que se convencionou designar “politização da Justiça”.

O pretexto da omissão não pode naturalizar a atuação normativa do Judiciário em campos nos quais o debate político ainda está em curso. Isso equivale, na prática, a legislar – e legislar, mesmo quando existirem dúvidas sobre eventuais linhas tênues de atuação, não é função atribuída à jurisdição constitucional.

É fundamental reconhecer o papel contramajoritário do STF na proteção dos direitos fundamentais. Mas esse papel, ainda que essencial, não é ilimitado. Seu exercício exige moderação e estrita observância dos marcos constitucionais. A força de uma decisão judicial da mais alta Corte nacional reside, antes de tudo, na legitimidade do processo que a originou e na observância do princípio da colegialidade que também fundamenta a sua existência.

A Corte cumpre papel crucial na proteção da Constituição e na contenção dos riscos autoritários. Mas a democracia exige que todos os atores (Executivo, Legislativo, partidos, imprensa, sociedade civil) atuem com contenção, controlando-se reciprocamente, respeitando seus limites e competências.

A preservação do Supremo como guardião da Constituição exige, acima de tudo, que ele próprio se submeta às balizas constitucionais que o legitimam. Isso implica uma revisão profunda do uso de decisões monocráticas em matérias sensíveis, a reafirmação da centralidade do colegiado e a consolidação de um sistema de precedentes estável, acessível e coerente.

Some-se a isso a necessidade de se reafirmar o princípio da separação dos Poderes em sua integralidade, a fim de se rejeitar práticas judiciais que, sob o pretexto de realizar a Constituição, terminam por comprometê-la. A autoridade do Supremo não se sustenta na exceção, mas na coerência de seus atos com o ordenamento jurídico e na contenção de sua atuação dentro dos limites que a própria Constituição impôs.

O Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel decisivo na história democrática do País. Para continuar a fazê-lo com autoridade e respeito, é preciso que suas decisões resultem de processos constitucionalmente legítimos, transparentes e colegiados. Mais do que suprir lacunas, é necessário construir critérios objetivos que confiram previsibilidade à sua atuação, sem esvaziar o papel do Parlamento nem deslegitimar o debate político.

Não se trata de negar ao Judiciário o poder de agir em momentos críticos – mas de lembrar que sua autoridade se sustenta na Constituição, não em uma criatividade judicial que, sabemos, não contribui para o fortalecimento da democracia.

Leia em O Estado de S. Paulo


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