Os robôs da vacina

Os robôs da vacina

O Brasil entra na rota das campanhas cibernéticas da Rússia e da China para promover suas próprias vacinas e desmerecer as concorrentes

DUDA TEIXEIRA

A agência responsável pela aprovação de remédios e vacinas para os países da União Europeia divulgou nesta semana um comunicado atípico. A entidade anunciou que, ao menos até aquele momento, não tinha recebido qualquer pedido de autorização de comercialização para a vacina Sputnik V, “apesar das matérias afirmando o contrário”.

A suposta notícia, àquela altura, já havia se espalhado por veículos de imprensa do mundo todo, inclusive do Brasil, onde grupos pressionam a Anvisa para liberar a vacina russa. A origem estava em uma matéria publicada no dia anterior pelo site do canal Russia Today, que estampava logo no seu título: “União Europeia aceita pedido de registro da vacina Sputnik V”. Conhecido pela sigla RT, o canal é um braço de propaganda do Kremlin, foi obrigado a se registrar nos Estados Unidos neste ano como agente de governo estrangeiro e sempre fez escola com títulos enviesados.

Anunciar em um título de matéria que uma agência aceitou um pedido de registro de vacina quando isso não aconteceu pode ser um simples erro jornalístico, passível de ser consertado a qualquer minuto na internet. Dois dias depois, contudo, o texto seguia inalterado em sua versão russa. “Em um país democrático, é esperado que os jornalistas cobrem as autoridades e corrijam os seus próprios erros. Mas não é assim que as coisas funcionam nos veículos russos. Eles obedecem ao governo, cuja intenção parece ser levar a crer que a União Europeia está agindo de má vontade ao não aprovar a vacina Sputnik V”, diz Jakub Kalensky, especialista em ações russas e que está a serviço do laboratório de pesquisa digital do Atlantic Council, em Praga. “Essa não é a primeira vez que a Rússia deturpa ou mente abertamente sobre fatos que envolvem cooperação internacional.”

Desde que paralisaram a Estônia com um ataque cibernético, em 2007, os russos têm mostrado que são capazes de interferir em outros países em nome de seus próprios interesses. Ações digitais também acompanharam a invasão com tanques na Geórgia, em 2008. O momento mais intenso da campanha russa na internet foi quando militares ocuparam a península da Crimeia, na Ucrânia, em 2013. Nas eleições americanas de 2016, os russos aprimoraram a técnica de direcionar mensagens a grupos mais suscetíveis, para minar as democracias alheias. Levantaram dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, ampliaram as queixas contra a brutalidade policial e — detalhe importante — questionaram a segurança das vacinas para diversas doenças.

Paradoxalmente, hoje os russos estão utilizando essa mesma infraestrutura digital, construída ao longo de vários anos, para promover a vacina Sputnik V e desmerecer suas concorrentes ocidentais. Além disso, eles também começaram a ensinar os chineses a atuar nas redes. “Há um intercâmbio crescente entre os dois países nessa área, que tem sido comandado pelo ministro de Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov. Foi depois dessa parceria que começamos ver os chineses mais à vontade para atacar as vacinas dos concorrentes na internet”, diz Kalensky.

Até o momento, as ações russas se limitam a textos e vídeos publicados nas agências de notícias controladas pelo Kremlin e em suas páginas nas redes sociais. Além do canal RT, os russos têm se utilizado das contas oficiais de embaixadas, de ministérios e do site Sputnik News, que tem versões em dezenas de idiomas, incluindo o português. O site dá notícias diversas, mas ultimamente tem se concentrado em promover as qualidades da Sputnik V e em gerar dúvidas sobre as vacinas ocidentais.

A pedido de Crusoé, a Alliance for Securing Democracy, organização que monitora a desinformação russa nas redes, fez um levantamento dos tuítes do Sputnik News, em sua versão brasileira, nos últimos 60 dias. O resultado se parece com o que se publica em outros idiomas. “Há claramente alguns assuntos de maior interesse, como a aprovação da vacina russa em outros países. Além disso, histórias negativas sobre outras vacinas, como a Pfizer, são sempre exageradas”, diz o americano Bret Schafer, que pesquisa a base de dados digitais da Alliance, em Washington.

Entre as notícias da Sputnik News, uma falava que o Brasil estava pagando mais caro pela vacina da AstraZeneca importada da Índia. “Enquanto o Brasil paga US$ 5,25 (cerca de R$ 28,40) por dose da vacina, o valor negociado pela União Europeia foi US$ 2,16 (R$ 11,69)”, dizia o título. Outro artigo, baseado em uma entrevista com um médico brasileiro, alardeava no Twitter: “As exigências que a Pfizer fez ao Brasil para uso de vacina são absurdas, por isso governo agiu corretamente em recusar imunizante do laboratório”.

Das mensagens produzidas pelos chineses selecionadas pela Alliance nos últimos 60 dias, é possível depreender que o objetivo é promover a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a chinesa Sinovac. Em um vídeo, o Consulado da China no Rio de Janeiro anunciou que a vacina deve ser um bem público. “A ideia dos chineses é apresentar a vacina como uma alternativa melhor aos produtos caros do Ocidente”, diz Bret Schafer.

Tanto a propaganda russa como a chinesa para o público brasileiro são incipientes se comparadas com as ações que estão sendo levadas a cabo em países de língua espanhola na América Latina. Enquanto a Sputnik Brasil tem parcos 16 mil seguidores no Facebook, a versão em língua espanhola, Sputnik Mundo, tem 450 mil. A página espanhol da RT tem 17 milhões de seguidores. Nesses veículos, a distorção da realidade tem sido bem mais frequente. No dia 17 de janeiro, a RT en Español anunciou que a Noruega estava investigando a morte de 23 idosos que tomaram a vacina da Pfizer, embora os óbitos não tivessem relação com a dose. Notícias veiculadas pela China em outras línguas também costumam ser alarmantes. Sites chineses já insinuaram que a imprensa americana se recusa a noticiar as mortes de pessoas que tomaram a vacina da Pfizer.

Com mais de mil mortos por dia pela Covid, é do interesse do povo brasileiro ter o maior número de doses de vacinas disponíveis. Cabe à Anvisa dizer quais são seguras e eficientes. O fato de que estamos diante de uma emergência sanitária não deveria amenizar a preocupação com a ingerência externa em assuntos nacionais. Esses dois países estão agindo assim porque têm regimes autoritários. Tanto o governo da Rússia como o da China hoje promovem suas vacinas de uma maneira que não seria possível em países democráticos. “Se o governo americano ou britânico tomasse atitudes como essas, eles incorreriam em conflito de interesses e possível conluio com empresas privadas”, diz a advogada Maristela Basso, professora de direito internacional na USP.

Os problemas da propaganda digital feita por outros governos aparecem quando eles distorcem a realidade, seja inventando notícias graves sobre concorrentes ou sugerindo falsamente que seus produtos já tiveram pedidos de registro aceitos. “Os russos estão usando as armas da Guerra Fria para derrubar os concorrentes, diminuir as vendas deles e exercer influência. Sob a perspectiva da gravíssima crise de saúde pública que o mundo enfrenta, não se trata de um comportamento ético, obviamente”, diz Basso. Outra questão é que, ao apontar falsamente para o perigo das vacinas, alimenta-se a o medo em relação a elas. “Essas notícias falsas podem gerar desconfiança entre as pessoas, que podem não querer tomar a vacina”, diz Bret Schafer, da Alliance for Securing Democracy.

Fonte: Crusoé 

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