STF: o inquérito e a caixa de Pandora
Poder atribuído ao Regimento Interno, personificado no inquérito das ‘fake news’, é como uma caixa que, se mantida aberta, tende a irradiar uma série de distorções
Por Diogo Leonardo Machado de Melo, Hamilton Dias de Souza, Humberto Bergmann Ávila, José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, Miguel Reale Junior e Renato de Mello Jorge Silveira
Diz a lenda que Pandora, criada por Hefesto, foi enviada à Terra com uma caixa onde se guardavam todos os males. Incontida em sua curiosidade, abriu-a, espalhando desgraças mundo afora – restando fechada apenas a esperança. A imagem aproxima-se da realidade do Judiciário brasileiro. Assistimos à ampliação questionada das competências do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente com o inquérito das fake news (Inquérito 4.781), instaurado de ofício com base no artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF).
No exame linguístico do referido dispositivo regimental temos que a expressão “ocorrendo” exige que a infração penal se torne um fato efetivamente realizado, concretizado no mundo físico, não bastando mera suspeita ou possibilidade. Já a locução “na sede ou dependência do Tribunal” estabelece limites espaciais precisos, restringindo a incidência da norma aos recintos institucionais do STF – tanto o espaço principal, como o plenário, quanto os acessórios, gabinetes e áreas anexas –, sem se estender a outros locais.
Desde 2019, diversos autores, mesmo no Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), exprimiram sua preocupação quanto à legitimidade do Inquérito 4.781. Chamou a atenção o entendimento estendendo a incidência ao ambiente virtual, no qual procedesse a disseminação de notícias tidas como falsas, calúnias, ameaças e outras infrações contra o STF, seus membros e seus familiares. Ampliou-se o próprio regimento, causando preocupações legítimas, sobretudo no que diz respeito à autonomia normativa da Corte e à (im)possibilidade de contrastar seus atos.
Em 1989 entendia-se que o RISTF, editado a partir de poderes conferidos pela ordem constitucional anterior, teria sido recepcionado pela nova Constituição, desde que compatível materialmente com a Carta de 1988 (SS 260-QO). Esse entendimento foi mantido e vinha acompanhado da compreensão de que leis posteriores poderiam revogar as disposições regimentais (Rel-EI-AdR 377-6-PR).
Hoje o entendimento não encontra justificativa, especialmente quando a própria Constituição vigente não mais autoriza que os regimentos internos dos tribunais disponham sobre normas processuais, pois Código de Processo Civil de 2015 não mais admite a convivência com regras regimentais de natureza processual.
Mesmo assim, o STF continuou aplicando o critério da especialidade, conferindo ao Regimento uma prevalência que, na prática, o alçou à condição de norma hierarquicamente superior. Essa orientação ganhou contornos inéditos em 2020, no julgamento da ADPF 572, quando a Corte aderiu de modo explícito a tal lógica, consolidando a primazia do Regimento mesmo diante de normas processuais legais posteriores e substancialmente reformadas, amparando-se em poderes implícitos supostamente derivados do seu papel.
Invocaram-se competências constitucionais do STF, entre as quais a defesa do Estado de Direito, da ordem democrática e dos direitos fundamentais. Sustentou-se que não há Poder Judiciário independente sem “juízes altivos e seguros”, concluindo que “coagir, atacar, constranger, ameaçar, atentar contra o STF, contra o Poder Judiciário, contra seus magistrados, contra os familiares dos magistrados, é atentar contra a Constituição federal”. Ampliou-se ainda mais o artigo 43 do RISTF, capaz de justificar a instauração do Inquérito 4.781 à revelia das normas processuais vigentes e em desacordo com os próprios limites semânticos do dispositivo regimental.
As dimensões temporais e de competência parecem ter distendido exageradamente a contenção esperada do Judiciário, em especial no que diz respeito à imparcialidade da jurisdição. O fármaco, ao ser utilizado em dose excessiva, pode envenenar mais do que curar. E, ao se pretender estabelecer a confusão entre agentes políticos do STF, seus familiares e afins, com o próprio Estado nacional, está a se fundamentar quase um crime de lesa-democracia, uma confusão perigosa.
O STF é o bastião da democracia. A soberania, que hoje busca o amálgama nacional, deve, sim, ser suportada. O mesmo de se dizer sobre sua necessária defesa. A constatação disso se fez presente em embates e agressões ocorridos recentemente. Entretanto, não poucas vozes afirmam que se está a cruzar fronteiras perigosas.
O poder atribuído ao Regimento Interno – personificado no chamado inquérito das fake news – revela-se como uma caixa que, se mantida aberta, tende a irradiar uma série de distorções. O STF defende a democracia e a justiça, mas deve ser conduzido por uma autocontenção e pelo crivo da separação de Poderes. Quando negligenciados, abrem espaço para violações graves ao devido processo legal e à própria ordem constitucional, disseminando insegurança jurídica em escala preocupante. Neste cenário, talvez não reste sequer outro local em que resguardar a esperança institucional. Brada-se, a toda voz e mais uma vez, pelo exercício de autocontenção e superação deste quase eterno inquérito que, de defensor da democracia, quiçá pode vir a se mostrar como seu algoz.
Opinião por
Diogo Leonardo Machado de Melo
Advogado, é membro da Comissão de Estudos sobre o STF do Instituto dos Advogados de São Paulo
Hamilton Dias de Souza
Advogado, é membro da Comissão de Estudos sobre o STF do Instituto dos Advogados de São Paulo
Humberto Bergmann Ávila
Advogado, é membro da Comissão de Estudos sobre o STF do Instituto dos Advogados de São Paulo
José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro
Advogado, é membro da Comissão de Estudos sobre o STF do Instituto dos Advogados de São Paulo
Miguel Reale Junior
Advogado, é membro da Comissão de Estudos sobre o STF do Instituto dos Advogados de São Paulo
Renato de Mello Jorge Silveira
Advogado, é membro da Comissão de Estudos sobre o STF do Instituto dos Advogados de São Paulo
