IA: hora de regular olhando para a realidade


IA: hora de regular olhando para a realidade

Por Daniel Becker

Os primeiros relatórios dedicados ao Brasil pela OpenAI não deixam espaço para abstrações ou futurologia. O País se consolida entre os três maiores usuários semanais do ChatGPT no planeta, com um volume impressionante de aproximadamente 140 milhões de mensagens trocadas por dia. Este dado, por si só, deveria operar uma mudança de chave imediata no debate nacional sobre inteligência artificial (IA). Mas o estudo avança e revela um retrato ainda mais significativo: 46% das micro, pequenas e médias empresas brasileiras já incorporaram a IA generativa em seus processos, com 75% avaliando positivamente seu impacto.

Mais crucial do que o volume bruto, porém, é a capilaridade democrática do fenômeno. Estados como Tocantins, Amapá e Mato Grosso despontam como líderes de uso proporcional à população, superando centros econômicos tradicionais. A ferramenta já é realidade nas mãos de professores da rede pública, pequenos varejistas, agentes de saúde e empreendedores informais. Não como um fetiche tecnológico de elite, mas como instrumento prático de produtividade, inclusão e resolução de problemas do cotidiano. Esse fato desmonta empiricamente a narrativa de que o Brasil ainda se prepara para a inteligência artificial. Ela já chegou, massivamente, operando fora dos grandes eixos e em um ritmo orgânico e próprio.

Ignorar essa realidade no processo legislativo é criar uma regulação descolada das necessidades nacionais. Propostas muito abstratas ou restritivas, inspiradas em modelos europeus de regulação rígida, tendem a inviabilizar ou encarecer o acesso à tecnologia para pequenos negócios, autônomos e iniciativas periféricas. Uma regulação homogênea e punitiva, em vez de reduzir desigualdades, pode ampliá-las, criando barreiras para quem tem menos recursos e deslocando a inovação para fora do País.

O desafio regulatório brasileiro, portanto, não é mais decidir se a IA pode ser usada. O dilema estratégico é como garantir que seu uso continue a ser um vetor de democratização, e não de nova exclusão. Essa missão exige abandonar a visão única de contenção de riscos e abraçar uma aposta institucional na criatividade e na resiliência nacional. Isso passa necessariamente por três pilares: 1) pensar em modelos regulatórios modulares e graduais, sensíveis ao porte e à função de cada agente; 2) investir maciçamente em alfabetização digital e técnica em larga escala; e 3) criar instrumentos de governança acessíveis, auditáveis e compatíveis com a realidade do setor público, da economia informal e da inovação de base comunitária.

Esse cenário demanda uma revisão crítica urgente dos paradigmas que vêm orientando nossa política pública para IA. Não precisamos replicar modelos concebidos em ambientes de hiperconformidade institucional e infraestrutura digital homogênea. Estamos diante da oportunidade ímpar de construir um marco legal próprio, sensível às nossas desigualdades estruturais e à força de inovação que emerge precisamente das margens.

A alternativa está numa base regulatória modular e escalonada, em que a autorregulação supervisionada desempenha um papel central. Não como desresponsabilização, mas como instrumento legítimo de governança distribuída, capaz de produzir regras específicas, auditáveis e adaptadas a realidades setoriais distintas. A combinação de códigos de conduta com participação qualificada, métricas públicas de desempenho e canais acessíveis de responsabilização pode ser muito mais efetiva do que regimes punitivos baseados exclusivamente em comando e controle.

A reavaliação do Projeto de Lei de Inteligência Artificial, citada pela deputada Luísa Canziani, representa uma oportunidade estratégica. Essa revisão permite construir um marco regulatório que reflita a realidade brasileira do uso de IA, abandonando modelos estrangeiros inadequados. Regular no Brasil exige reconhecer as práticas já existentes e transformar essa inteligência distribuída numa normatividade aplicável, plural e eficaz.

A consolidação de um ambiente regulatório efetivo exige, por fim, atenção à dimensão subjetiva do uso da inteligência artificial. A AI Literacy deve ser política pública de base, combinando habilidades técnicas com compreensão crítica sobre limites e potenciais. Já para empresas e desenvolvedores, é crucial estimular práticas permanentes de análise de riscos e avaliação regulatória antecipada, por meio de estruturas de legal red teaming para testar hipóteses e antecipar cenários.

Incluir essas camadas é essencial para que a regulação brasileira não se limite a prever obrigações formais, mas ajude a moldar práticas efetivas de uso responsável. O marco legal não pode ser apenas um catálogo de proibições. Precisa ser um instrumento para expandir capacidades, distribuir inteligências e garantir que o protagonismo brasileiro no uso da IA se converta, finalmente, em protagonismo regulatório.

Opinião por Daniel Becker Advogado, é diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem

Leia em O Estado de S. Paulo


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