Bens imateriais, arrependimento e desconexão regulatória

Bens imateriais, direito de arrependimento e desconexão regulatória

Concepção de bens digitais adquiriu complexidade ainda maior, o que enseja uma atualização legislativa

DANIEL BECKER e JÚLIO MASSI

07/06/2024 05:10

O direito de arrependimento é um instituto fundamental para o mercado de consumo. O famosíssimo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor já está razoavelmente embrenhado nas políticas de devolução das plataformas e lojas de e-commerce.

Contudo, é bom dizer que a lei, promulgada em 1990, continha o direito de arrependimento como forma de proteger o consumidor da compra efetuada fora do estabelecimento comercial, isto é, dentro do recorte temporal, as compras realizadas por telefone, após análise de catálogos de produtos ou programas de televisão. E é sobre o anacronismo do dispositivo vis-à-vis o comércio eletrônico que pretendemos debater neste breve artigo.

Na prática, toda vez que compramos pela internet estamos comprando um bem por intermédio da representação dele, como uma imagem ou vídeo. Por mais fiel que esta representação seja, não é razoável onerar o consumidor pela sua escolha quando ela é mediada por elementos disponibilizados pelo fornecedor — com ou sem má-fé.

Em 2013, o Decreto 7.962/13, também conhecido como Lei do e-commerce, dispõe detalhadamente sobre o direito de arrependimento e como os fornecedores devem efetivá-lo operacionalmente, e.g. a obrigatoriedade do fornecedor notificar a instituição financeira da desistência da compra, a possibilidade de manifestar o arrependimento pelo mesmo canal de compra etc.

Ocorre que, de 2013 para cá, uma série de novos produtos e serviços começaram a ser negociados cotidianamente na internet. A concepção de bens digitais também adquiriu uma complexidade ainda maior, o que ensejaria uma atualização nessa legislação de forma a esclarecer confusões que o direito de arrependimento tem gerado.

Bens digitais e serviços digitais: instantâneos e consumíveis

Se você contrata a Netflix, mas se arrepende em até 7 dias, pode devolver? A princípio não deveria, pois a Netflix é um serviço — não um produto — imediatamente disponível para consumo após a compra, e, por ser digital, não cabe a discussão acerca da sua representação, já que ele será sempre consumido de forma mediada pela internet. Simplificando: mesmo que existisse uma forma de comprar a Netflix “na loja”, ele não seria diferente do produto vendido online, portanto comprar in loco ou online não tem diferença.

Se o direito de arrependimento for aplicado aqui da mesma forma que cabe no caso do e-commerce, o cliente teria então 7 dias de uso indevido do produto. Na prática, ele poderia ver uma série de filmes até decidir que não quer mais o produto, o que gera não somente um custo para a empresa, mas incentiva uma conduta abusiva dos usuários.

E se compro uma criptomoeda, é possível devolvê-la? Similar à Netflix, a moeda também é instantaneamente disponível e mediada pela internet, ou seja, não tem diferença comprar “numa loja física” ou na rede. A diferença é que a moeda é um produto/bem digital, ou seja, ao contrário do serviço, ela pode ser “devolvida”, como também despendida. Nesse caso, não cabe o direito de arrependimento, ainda que se possa devolver, sem necessariamente gerar prejuízo para o fornecedor. O argumento central aqui é que tanto a compra quanto o uso são mediados pela virtualidade.

E se eu compro um item dentro de um jogo? Aí a situação se torna ainda mais complexa: o jogo é, por vezes, um serviço, e dentro dele você pode comprar um item que é “digitalmente perecível”, ou seja, uma vez utilizado ele cumpre sua função e desaparece. Nesse caso, posso me arrepender da compra?

A maneira mais comum desse arrependimento vem na forma de pais desesperados por um reembolso de compra feito pelos filhos em seu celular. São inúmeros casos, onde crianças desassistidas realizam gastos vultosos para adquirir itens cosméticos, boosts de XP etc. A facilidade da compra via cartão de crédito gera situações em que crianças e adolescentes compram itens dentro do jogo que, depois, os pais precisam reverter. Nesse caso, temos uma mistura. De um lado, o item não pode (e nem faz sentido) ser devolvido. Da mesma forma, o efeito do uso do item não pode ser desfeito pelo fornecedor. Contudo, o valor da compra pode ser estornada.

Ainda que caiba a devolução dos valores, parece-nos que aqui o direito de arrependimento não deveria ser aplicado como justificativa pelos seguintes motivos: (i) não há diferença na compra in loco ou digital; (ii) o efeito do uso desse item não pode ser desfeito, e (iii) o item é instantaneamente disponível.

Assim, podemos resumir aqui os princípios que devem nortear a aplicação do direito de arrependimento para os bens digitais: (i) a indiferença do lugar da compra (in loco ou digital), (ii) a disponibilidade instantânea do bem, o que afasta o prazo de 7 dias para exercício do direito, e (iii) se o bem digital é digitalmente (finito) e/ou seu uso tem efeito irreversível;

Sob essa ótica, vejamos dois casos concretos. O primeiro trata-se de um jogador de Call of Duty Mobile da Blizzard[1], que, ao comprar moedas virtuais do jogo para então comprar itens no jogo, alegou ter se arrependido dos itens comprados. A juíza de primeira instância entendeu corretamente que, se tratando de bem imaterial e virtual, não caberia argumentar uma diferença do ofertado e da compra. A sentença, contudo, foi reformada pelo acórdão, que entendeu ser aplicável o direito de arrependimento pela letra fria do artigo 49 do CDC.

O racional da desembargadora foi, ipsis litteris, que “o consumidor ao observar um produto digital em um jogo eletrônico tem uma percepção, que pode mudar ao utilizar o item comprado, por exemplo, o jogo em questão, Call of Duty: Mobile  (…) ao comprar um bem virtual pode sim ocorrer divergências entre o ofertado e o entregue, por suas peculiaridades em relação a tonalidade das cores, o brilho, os barulhos entre outras coisas”.

Noutro caso, envolvendo o game para celular Sniper 3D da Wildlife Studios[2], o jogador adquiriu um item, no caso concreto, uma arma poderosa que lhe ajudava a marcar pontos no jogo e, após cinco dias, decidiu exercer o direito de arrependimento contra a empresa e o Google. As empresas recusaram, uma vez que a hipótese não se enquadrava dentro de suas políticas e o autor optou por ajuizar uma ação, que foi julgada procedente.

Sobre o tema, a falta de conhecimento de grande parte dos magistrados acerca do funcionamento de jogos e aplicações virtuais como um todo, aliada ao anacronismo do CDC, resulta em decisões teratológicas como essas. E é bom dizer que até mesmo a reconhecida professora de direito do consumidor Cláudia Lima Marques afirma que os produtos virtuais são bens totalmente desmaterializados e a imediata incorporação desse bem ao patrimônio do consumidor tão logo realizada a transferência via internet impede o exercício do direito do arrependimento na forma da lei[3].

Até seria plausível considerar que a oferta pode ser abusiva ou enganosa, nas próprias definições do CDC, mas o direito de arrependimento não versa sobre tal divergência entre oferta e produto. Ao contrário, o direito de arrependimento não requer motivação específica para o arrependimento, pois pauta-se na ideia de que o meio pelo qual se compra (web) já justifica a priori a desistência.

Se seguirmos o racional apresentado em tais decisões, caminharemos para sacramentar o direito de arrependimento em qualquer circunstância digital. O consumidor sempre poderá alegar que há uma distância entre oferta e produto, pois, em qualquer produto sem free trial, ele está comprando somente com base na mera expectativa.

Parece bem claro que estamos diante de uma hipótese de desconexão regulatória. Mais especificamente em um exemplo categórico de “square peg in a round hole situation”, onde, conforme muito bem definido por Eduardo Bruzzi, existe a tentativa, por parte do ordenamento, de encaixar algo novo e diferente em uma moldagem já existente. (…) é a tentativa de compatibilizar uma regulação obsoleta e ultrapassada com uma inovação tecnológica que, claramente, exige uma atualização e/ou renovação do arcabouço normativo-regulatório estatal.

Um exemplo de boa prática: na plataforma Steam, é permitido aos usuários solicitar o reembolso de quase qualquer compra dentro de um prazo de até 14 dias após a aquisição, desde que o jogo ou software tenha sido jogado por menos de duas horas. Esse limite de tempo de uso é uma condição particular que visa equilibrar os direitos dos consumidores com a proteção dos desenvolvedores de software contra o uso abusivo da política de reembolsos.

Para encerrarmos o texto em tom otimista, é um problema que podemos atacar por diversas frentes. De oferecer soluções de produto, como na Steam, até alterar o CDC para incluir mais granularidade quanto ao arrependimento em casos de bens digitais, tudo é bem-vindo. É importante utilizarmos todas as ferramentas para reduzir condutas abusivas dos consumidores e reduzir o número de litígios em torno de um tema tão presente no nosso cotidiano.

[1] Processo 1016091-34.2022.8.26.0405

[2] Processo 0052168-83.2019.8.19.0203

[3] MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 209.

DANIEL BECKER – Sócio das áreas de Resolução de Disputas e de Proteção de Dados e Regulatório no BBL | Becker Bruzzi Lameirão Advogados. Diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Membro das Comissões de 5G e Assuntos Legislativos da OAB/RJ. Organizador dos livros “O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind”; ” O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind, vol. 2″; ” Regulação 4.0, vol. I e II”; ” Litigation 4.0″; e “Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados”, todos publicados pela Revista dos Tribunais.

 

JÚLIO MASSI – Advogado fundador do Massi Advogados

Fonte: JOTA


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